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JOSÉ SARNEY
Os aviões
de carreira
Os acontecimentos da Argentina e da Venezuela, embora com
desfechos diferentes, guardam uma
simetria clara: ambos mostram a fragilidade das instituições democráticas
no continente, incapazes de dar resposta aos agudos problemas sociais e
políticos que ameaçam as democracias pobres, tão vulneráveis que balançam com as revoluções de rua, tão frequentes no século 19.
As cenas de saques em Buenos Aires
e em Caracas (semelhantes à da Ceasa
do Rio de Janeiro) mostram uma violência fortemente vinculada à questão
social -a da multidão enfurecida
buscando alimentos.
Tanto a crise argentina como a venezuelana têm um complicador muito
característico da América Latina -o
abandono do objetivo do Estado em
favor de projetos de poder pessoal.
A questão de fundo remanesce, as
soluções de circunstância superam os
problemas conjunturais, mas não resolvem as contradições estruturais.
A grande frustração é que a democracia voltou à América Latina, mas
estagnou-se, transformou-se em um
processo formal, não alcançou a área
social, desintegrou o Estado, aumentou a pobreza, criou nichos de violência com todos os componentes de
guerrilha urbana -delinquência juvenil, crime organizado, invasão das
drogas nas camadas pobres-, enfim,
um caldo de cultura em que a sociedade e a cidadania não avançam. A predominância do econômico como objeto e fim de todas as ações do Estado,
num modelo importado, favorece a
concentração de renda e uma permanente insatisfação.
Para o agravamento dessa situação,
depois do episódio das torres gêmeas
de Nova York, os americanos passaram a ter outras prioridades, que não
transitam pela América do Sul, além
de um certo e justificado ressentimento de não terem recebido da região a
solidariedade que encontraram na
Europa. Aqui, foram apenas declarações formais, devidamente constatadas pelo Departamento de Estado.
Ninguém espere de Bush gestos de
grandeza e de esquecimento. Não é do
seu estilo nem do proceder republicano.
A Chávez não resta outro caminho
senão o de procurar apaziguar e compor. O país está dividido e irremediavelmente fragilizado em suas instituições.
Há em todo o mundo uma certa insatisfação com a democracia representativa. Surgiu um novo interlocutor da sociedade democrática: a mídia
em tempo real, que passou a representar a opinião pública e tem como adversários e concorrentes os políticos e
os partidos políticos. Uma nova questão é posta: quem representa o povo?
Nas democracias ricas (Europa,
EUA e Canadá), o povo está insatisfeito com os governantes, mas acha que
o regime funciona bem, sobretudo em
três aspectos essenciais: o direito de
voto, o direito de protesto e o direito
social -por meio de um Estado redistribuidor. Aqui, restaram o voto e o
protesto, mas a sociedade empobrece
e o descrédito do Estado afeta a raiz
das instituições e gera sequelas incontornáveis.
Essa doença ocorreu no Peru, no
Equador, no Paraguai, na Argentina e,
agora, na Venezuela. Tomemos vacina, porque há algo mais no ar do que
os aviões de carreira.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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