São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Os aviões de carreira

Os acontecimentos da Argentina e da Venezuela, embora com desfechos diferentes, guardam uma simetria clara: ambos mostram a fragilidade das instituições democráticas no continente, incapazes de dar resposta aos agudos problemas sociais e políticos que ameaçam as democracias pobres, tão vulneráveis que balançam com as revoluções de rua, tão frequentes no século 19.
As cenas de saques em Buenos Aires e em Caracas (semelhantes à da Ceasa do Rio de Janeiro) mostram uma violência fortemente vinculada à questão social -a da multidão enfurecida buscando alimentos.
Tanto a crise argentina como a venezuelana têm um complicador muito característico da América Latina -o abandono do objetivo do Estado em favor de projetos de poder pessoal.
A questão de fundo remanesce, as soluções de circunstância superam os problemas conjunturais, mas não resolvem as contradições estruturais.
A grande frustração é que a democracia voltou à América Latina, mas estagnou-se, transformou-se em um processo formal, não alcançou a área social, desintegrou o Estado, aumentou a pobreza, criou nichos de violência com todos os componentes de guerrilha urbana -delinquência juvenil, crime organizado, invasão das drogas nas camadas pobres-, enfim, um caldo de cultura em que a sociedade e a cidadania não avançam. A predominância do econômico como objeto e fim de todas as ações do Estado, num modelo importado, favorece a concentração de renda e uma permanente insatisfação.
Para o agravamento dessa situação, depois do episódio das torres gêmeas de Nova York, os americanos passaram a ter outras prioridades, que não transitam pela América do Sul, além de um certo e justificado ressentimento de não terem recebido da região a solidariedade que encontraram na Europa. Aqui, foram apenas declarações formais, devidamente constatadas pelo Departamento de Estado. Ninguém espere de Bush gestos de grandeza e de esquecimento. Não é do seu estilo nem do proceder republicano.
A Chávez não resta outro caminho senão o de procurar apaziguar e compor. O país está dividido e irremediavelmente fragilizado em suas instituições.
Há em todo o mundo uma certa insatisfação com a democracia representativa. Surgiu um novo interlocutor da sociedade democrática: a mídia em tempo real, que passou a representar a opinião pública e tem como adversários e concorrentes os políticos e os partidos políticos. Uma nova questão é posta: quem representa o povo?
Nas democracias ricas (Europa, EUA e Canadá), o povo está insatisfeito com os governantes, mas acha que o regime funciona bem, sobretudo em três aspectos essenciais: o direito de voto, o direito de protesto e o direito social -por meio de um Estado redistribuidor. Aqui, restaram o voto e o protesto, mas a sociedade empobrece e o descrédito do Estado afeta a raiz das instituições e gera sequelas incontornáveis.
Essa doença ocorreu no Peru, no Equador, no Paraguai, na Argentina e, agora, na Venezuela. Tomemos vacina, porque há algo mais no ar do que os aviões de carreira.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Gabriela Wolthers: Discurso em ruínas
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.