São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 2000


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A ciência e a crise


O Brasil sempre teve sucesso quando mobilizou a sua inteligência para enfrentar os grandes problemas nacionais


CRODOWALDO PAVAN

Dez milhões de desempregados, a falta de perspectivas, própria de períodos de falta de crescimento, além de explosões de violência em níveis nunca dantes vistos, atingiram em cheio o proverbial otimismo brasileiro. Quem agora se atreveria a dizer que o Brasil é o país do futuro ou que Deus é brasileiro sem que fosse ridicularizado?
E não é mais somente algo que possa ser superado simplesmente com a retomada do desenvolvimento econômico. Nos últimos dez anos, a própria idéia de uma cultura brasileira original foi fortemente contestada, causando uma grande perplexidade sobre a identidade do Brasil e sobre seu futuro.
Ao longo do século 20, muitos intelectuais brasileiros defenderam a idéia de que no Brasil seria possível criar uma civilização tropical. Desde o movimento modernista, a intelectualidade se convenceu de que era possível afirmar a singularidade da identidade brasileira.
A ciência e a tecnologia brasileiras contribuíram decisivamente para a construção dessa cultura. Em épocas passadas o Brasil viveu de café, uma dentre as dezenas de cultivos melhorados e adaptados a nossos solos e climas pelos nossos pesquisadores do Instituto Agronômico de Campinas.
Na agricultura tropical, o Brasil desenvolveu a tecnologia mais avançada do mundo. Aprendeu a utilizar os solos pobres e ácidos de grande parte do território brasileiro. Com isso incorporou à produção agrícola milhões de hectares, hoje cobertos com soja, café, laranja e outras culturas. O conhecimento tornou possível a exploração de novas fronteiras agrícolas, como o cerrado.
Sempre que o país mobilizou sua inteligência para enfrentar problemas nacionais teve sucesso. A Embraer é bom exemplo, realizando exportações superiores a US$ 1 bilhão de aviões a jato e detendo uma carteira de encomendas cujo valor se eleva a US$ 6 bilhões.
Tudo começou nos anos 50, quando o governo federal realizou investimentos em nosso melhor produto: o homem brasileiro. Naquela época, foi criado o Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Alguns anos depois, engenheiros formados pelo ITA e que trabalhavam no Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento do CTA projetaram e fabricaram o Bandeirante, que solucionou problemas da aviação regional brasileira, e, pela exportação para os EUA, abriram caminho para o crescimento da Embraer.
O Brasil sofreu sérias restrições de importações devido à crise do petróleo de 1973. A resposta foi a realização de investimentos na busca de fontes alternativas de energia, como o álcool, bem como o desenvolvimento de tecnologia para exploração de petróleo em águas profundas. Hoje o Brasil explora com muita eficiência petróleo em alto mar graças a tecnologias geradas no país por brasileiros. Não há investimento de maior retorno do que a pesquisa científica e tecnológica e a formação de pessoal qualificado. Veja-se o retorno obtido pelo país por meio do Instituto Agronômico de Campinas ou pela Embrapa ou ainda o custo e manutenção do ITA diante da Embraer.
No mundo contemporâneo, o poder e a riqueza derivam do saber. Em 1998, a indústria de software norte-americana faturou algo como US$ 141 bilhões. E trata-se de uma indústria jovem, ícone dos novos tempos, que surgiu e cresceu nos últimos 20 anos.
Até na agricultura o conhecimento será o centro da atividade: plantas transgênicas, novos de tipos de bactérias fixadoras de nitrogênio do ar diretamente nas folhas das plantas, substituindo caros adubos químicos e permitindo melhor exploração de solos pobres.
Por tudo isso, o Brasil tem de abandonar de uma vez por todas a mitologia da globalização, a idéia de que a redenção virá do estrangeiro. Ao mesmo tempo, é preciso ver que mais de dois terços do comércio mundial se realizam entre países desenvolvidos e envolvem a exportação de bens industriais de alta complexidade, tais como aviões, computadores, softwares, chips e fármacos.
Por essas razões, a única forma de manter a estabilidade da moeda no longo prazo será garantir um lugar ao sol para o Brasil entre os países produtores de conhecimentos e, portanto, exportadores de bens que materializam esses conhecimentos. Se o país deseja importar muito, terá de exportar mais ainda. A meta de US$ 100 bilhões de exportações poderá ser alcançada se o país fomentar o desenvolvimento de conhecimento e o crescimento da indústria baseada em conhecimento. Essa é uma agenda que deveria estar sendo debatida com a sociedade pelo governo.
Soluções para os problemas não serão encontradas sob a apatia que impera sobre grande parcela da nossa intelectualidade. A primeira condição para que o Brasil supere o conjunto de problemas que se abate sobre a nação é que haja uma vontade férrea de superá-los.
Os jovens, pelo menos, estão nos dando esperança. É bom lembrar que, quando os estudantes, a intelectualidade e os trabalhadores se puseram em movimento pela democracia e contra o regime militar, as condições políticas eram adversas. É tempo de, como ensinava Voltaire, cultivar nosso jardim.


Crodowaldo Pavan, 80, geneticista, é professor emérito da USP e da Unicamp e membro da Pontifícia Academia de Ciências.



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