São Paulo, quarta-feira, 19 de julho de 2000


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Controlar ou democratizar?


Cabe à sociedade refletir se a reforma deve continuar a ser votada a toque de caixa ou merece ser rediscutida


LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI

A reforma do Judiciário teve sua redação final votada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados. Como no segundo turno só deve haver destaques supressivos, o texto atual será, basicamente, o que a Câmara oferecerá à sociedade brasileira como projeto para um dos Poderes de Estado.
A reforma é necessária para aperfeiçoar e democratizar internamente o Poder Judiciário. Mas pode-se reformar para melhor ou para pior. O jurista argentino Eugênio Zaffaroni faz interessante classificação, em três grupos, das estruturas judiciárias. O primeiro é dos modelos empírico-primitivos, nos quais ingresso e demissão de juízes se dá por juízo político. Os modelos tecnoburocráticos caracterizam-se pela existência de seleção técnica forte -a nomeação já não é política- e estruturação burocrática da carreira da magistratura, com a concentração do poder interno nas cúpulas.
Já nos Judiciários de corte democrático contemporâneo, o governo do Poder é atribuição de um órgão pluralístico (normalmente um conselho da magistratura) separado das últimas instâncias e formado, em sua maioria, por juízes eleitos horizontalmente (quer dizer, tendo mesmo peso o voto de juiz de primeiro grau ou de tribunal superior), por todos os magistrados.
O mesmo autor aponta que as Justiças dos países latino-americanos correspondem todas ao modelo empírico-primitivo, com exceção do Brasil, que tem estrutura tecnoburocrática. No sistema brasileiro, o ingresso se dá por concurso com correspondente seleção técnica -a carreira é verticalizada, com normas vinculadas sobre promoções, os juízes das instâncias ordinárias gozam de razoável independência externa (as garantias de inamovibilidade e vitaliciedade impedem demissão política) e o poder de governo interno, verticalizado, está concentrado nas instâncias superiores. Não há órgão de governo (conselho) de eleição horizontal e a indicação dos membros da Corte Suprema é exclusivamente política.
Esses últimos dois pontos são os problemas graves que têm (teriam) de ser enfrentados por uma reforma democrática. O texto pífio aprovado pela Câmara vai na contramão, o que não surpreende no atual ambiente político.
Primeiro, o governo tratou de concentrar o controle de constitucionalidade nas mãos dos tribunais superiores, de nomeação exclusivamente política, retirando-o do controle difuso, por meio das leis 9.868 e 9.882, aprovadas, silenciosamente, pelo Congresso. Depois, a reforma (que nem merece esse nome, tão pontual restou) no que mais releva limitou-se a um tripé: conselho de controle; perda do cargo de juiz por "falta de decoro" e redução da competência das instâncias ordinárias.
O conselho proposto é o oposto de um modelo de conselho democrático e horizontal: possui membros internos, indicados todos pelos tribunais superiores, quatro integrantes indicados pela OAB e Ministério Público e dois pelo Congresso, com consequente vinculação política. Só não há lugar nesse conselho para magistrado eleito por seus pares (como previsto pelo artigo 220 da Constituição portuguesa, por exemplo, em relação a sete membros do respectivo conselho). É conselho de composição não democrática, sim burocrático-corporativo-política.
E esse conselho poderá, em processo administrativo, demitir juízes por falta de decoro. Mas o que é falta de decoro? Que lei a define? Que obra de doutrina a conceitua? Certamente não há, porque é conceito propositadamente impreciso, político, a possibilitar perda de cargo por juízo político do tal conselho.
E a redução da competência dos juízes de primeiro e segundo graus se dará pela submissão obrigatória a súmulas vinculantes do STF.
Só o que essa reforma não ousou (ou não conseguiu) foi eliminar o ingresso por seleção técnica, e não por indicação política. Mas reduz drasticamente a competência (em consequência, o poder) dos juízes concursados, porque sabe que a via democrática do concurso garante pluralidade ideológica: obriga-os a decidir conforme súmulas vinculantes do STF e permite a esse tribunal avocar ações, determinar a suspensão de processos nos juízes inferiores e proferir decisões, inclusive sobre "interpretação (de lei) conforme a Constituição", com efeito vinculante.
Se o esvaziamento da competência e a submissão às decisões dos tribunais de corte político não for suficiente para a domesticação dos juízes que ingressam por concurso e atuam nas instâncias de contato direto com a população, entra em cena a ameaça de demissão política.
Assim, essa reforma faz o Judiciário retroceder para um modelo empírico-primitivo em vez de avançar ao sistema democrático contemporâneo.
Cabe à sociedade brasileira e aos próprios setores democráticos do Congresso refletir se a reforma que desejam é a do conselho, da demissão administrativa por inconceituável falta de decoro, da súmula vinculante, da avocatória e do esvaziamento das instâncias ordinárias e se essa reforma deve continuar a ser votada a toque de caixa ou merece ser rediscutida de forma ampla. E, principalmente, se o Judiciário deve ser "controlado" ou democratizado e qual das alternativas é compatível com o Estado Democrático de Direito.
Se a sociedade brasileira não o fizer, por certo, a verdade, que vem do tempo, virá à luz um dia. Poderá ser tarde.


Luiz Felipe Silveira Difini, 41, é presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris).



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