São Paulo, terça-feira, 19 de outubro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O direito do anencéfalo à vida
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Ora, o que se pretende na ação ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde é descumprir o preceito fundamental do direito à vida (antecipação de morte de anencéfalo), considerando-o menos importante que a autonomia de vontade da mulher de abortar e a liberdade de o fazer, visto que a saúde da mulher não corre, na gravidez do anencéfalo, risco maior do que em qualquer gravidez. Em outros termos, o direito objetivo do anencéfalo à vida, mesmo que curta, é afastado pelo aborto (antecipação da morte) por força da autonomia da vontade e liberdade da mãe, que são critérios meramente subjetivos. Aliás, o Código Civil brasileiro, no artigo 2º, declara que "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro". Seria fantasticamente curioso que essa disposição preservasse todos os direitos menos o direito à vida. As próprias premissas da ação, que impressionaram o brilhante ministro Marco Aurélio -quais sejam: a) há risco de vida para a gestante (a maioria dos médicos diz que é idêntico ao de qualquer parto); b) a anencefalia seria diagnosticada com absoluta precisão em 100% dos casos (já tive uma dedicada aluna de direito constitucional em que a anencefalia foi diagnosticada e a mãe recusou-se a abortá-la, estando o diagnóstico errado); c) o anencéfalo não resistiria senão algumas horas (conheço casos em que duraram meses)-, do ponto de vista fático revelaram-se inconsistentes. O que a ação pretende é jurisdicizar "o descumprimento de preceito fundamental" -ou seja, a criação de um novo tipo de atentado à vida e antecipação da morte, que é o aborto eugênico do anencéfalo-, razão pela qual, com clareza, o procurador-geral da República contestou o cabimento desse tipo de ação, que na hipótese não objetiva "uma interpretação conforme a Constituição", mas "desconforme", transformando os ministros do STF em parlamentares não eleitos. Como disse Sua Excelência, o anencéfalo ou é "ser humano" ou é "uma coisa". Se não for "uma coisa", mas um ser humano, deve-se aplicar a ele o mesmo princípio legal que se aplica aos casos de transplante de órgãos, só admitindo a retirada de órgãos após a morte -vale dizer, desde que não haja nenhum sinal de vida cerebral ou vital no ser de quem o órgão será retirado. Nos anencéfalos, apesar da inexistência total ou parcial de cérebro, todos os demais órgãos funcionam, devendo-se esperar, pois, que a morte, em seu devido tempo, aconteça, e não que se interrompa a vida, como pretende a referida ação, proposta por servidores da saúde, que, pelo juramento de Hipócrates, que fazem, deveriam lutar para preservá-la sempre, desde a concepção. Ives Gandra da Silva Martins, 69, advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Tarso Genro: Choques e voluntarismo Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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