São Paulo, terça-feira, 19 de novembro de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Abaixo o tráfico de influência

Parte das elites brasileiras habituou-se ao tráfico de influência. O hábito se agravou durante o atual governo por conta da condução das privatizações. Está previsto no Código Penal como o crime de que trata o artigo 332: "Tráfico de influência. Solicitar, exigir, cobrar ou obter para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função." Ocorre mesmo quando o funcionário não haja sido compensado. Tem por contrapartida a advocacia administrativa, o patrocínio de interesse privado por parte de funcionário. Como o "lobby" não está regulamentado no Brasil, o direito brasileiro é mais severo do que, por exemplo, o americano na criminalização dessas práticas.
O país deseja intensamente acabar com a corrupção. A fonte mais importante da corrupção é o financiamento das campanhas eleitorais. A variante mais prejudicial da corrupção é aquela que dissolve a capacidade do Estado no ácido das influências privadas. Nenhum projeto transformador se viabilizará no Brasil se não desprivatizar o Estado.
As condições para desprivatizá-lo estão dadas pela combinação de três circunstâncias: a eleição de novo governo que não está no bolso de ninguém, a formação de massa crítica de jovens procuradores e juízes decididos a mudar as regras do jogo e o aumento da intolerância pública para com o que alguns endinheirados consideram natural.
Inconscientes dessa transformação, ou indiferentes a ela, como drogados à beira do precipício, grandes empresários já se movimentam para restabelecer, sob o novo regime, o tráfico em que se viciaram. Um alega aos comparsas que financiou a campanha de tal político ascendente; outro, que se entende com o provável diretor de certo fundo de pensão; outro, ainda, que tem os ouvidos de quem pode, em ministérios e bancos públicos, garantir o belo negócio que planeja. Tudo entre amigos. Dentro de dois ou três anos, alguns desses traficantes de influência estarão -há razões para esperar- condenados e presos.
O que fazer?
Em primeiro lugar, financiar com recursos públicos as campanhas eleitorais. É a mais urgente das reformas políticas e a que conta com mais amplo apoio.
Em segundo lugar, demonstrar determinação de não transigir com o tráfico de influência. O governo não deve esperar pelo Ministério Público; deve instituir medidas permanentes de vigilância e de investigação internas. Nas áreas críticas, como a administração dos fundos de pensão, convém renovação radical de quadros.
Em terceiro lugar, regulamentar, de maneira restritiva e rigorosa, o "lobby", para marcar a divisória entre a representação legítima de interesses privados e a atividade criminosa do tráfico de influência.
Em quarto lugar, criar as instituições que nos poupem de escolher entre um Estado que nada faz pela produção e um Estado que se rende a clientelas. Instituições que subordinem qualquer apoio público a regras impessoais e a critérios de desempenho. E que insistam na democratização das oportunidades e no aprofundamento da concorrência como condições e como objetivos da atuação econômica do Estado. Enquanto política industrial significar fila especial no recebimento de favores públicos, não teremos política industrial sadia nem desenvolvimento democratizante.
Se o novo governo iniciar essas medidas saneadoras, terá andado meio caminho na conquista da autoridade de que precisa para mudar o Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.

Internet: www.law.harvard.edu/unger


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