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TENDÊNCIAS/DEBATES
O maior poder da República
IVES GANDRA MARTINS
A administração tributária do
eficiente secretário da Receita Federal, nos dois últimos anos, fez com
que esse órgão fosse, lentamente, transformado no maior poder da República,
a que todos os 170 milhões de brasileiros
devem prestar reverência e se curvar a
tudo o que venha a exigir, legal ou ilegal.
Os ataques aos direitos fundamentais
do contribuinte começaram a ser delineados, em começos de 2001, quando as
leis complementares 104 e 105 alteraram
o Código Tributário Nacional, ao arrepio da Constituição, embora nenhum
dos autores dos respectivos projetos de
lei tivesse os títulos e os conhecimentos
dos pais do direito tributário brasileiro,
que formataram referido código (lei nš
5.172/66): Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Carlos da Rocha
Guimarães, Tito Rezende e Aliomar Baleeiro, entre outros.
Pela lei complementar nš 104/01, ofertou-se aos agentes fiscais o direito de
desconsiderar leis tributárias aprovadas
pelo Congresso Nacional, adotando
aquela de sua preferência pessoal, sempre que, entre dois atos legislativos de
possível escolha pelo contribuinte, este
preferir seguir aquele que assegure menor peso impositivo.
A isso se denominou "norma antielisão", que, apesar de permitida em grande parte dos países -como reitera a Receita Federal-, sua contestação nessas
nações é tão grande que são pouquíssimos os casos em que efetivamente é
aplicada. Vale dizer, aquilo que não "pegou" nos países civilizados entendeu a
Receita que deva "pegar" no Brasil.
Pela lei complementar nš 105/01, pretendeu o eminente secretário -a quem
rendo as homenagens de ter servido de
"avalista" do Brasil no FMI, ao obter os
famosos superávits primários e evitar o
descompasso orçamentário- substituir o Poder Judiciário pelo agente fiscal
em matéria de sigilo bancário. Afastou,
portanto, o poder neutro -capaz de
permitir a quebra do sigilo do sonegador e de proteger o bom contribuinte
contra o arbítrio fiscal- e transferiu esse poder para quem tem por dever funcional suspeitar permanentemente dos
"produtores de tributos".
Duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a validade das referidas
leis estão adormecidas no Supremo Tribunal Federal, há quase dois anos, apesar de ter havido pedido de urgência nas
medidas cautelares propostas.
Posteriormente, a Receita Federal
procurou -em nível, agora, de legislação ordinária- ofertar ainda maior
força aos senhores agentes fiscais, de
forma que, se o contribuinte, agindo
sem dolo, sem fraude e sem má-fé, adotasse, entre duas leis vigentes e aprovadas pelo Congresso, aquela de menor
peso impositivo, deveria pagar o tributo
calculado pela norma que hospedasse a
maior carga tributária. Os deputados federais derrubaram essa nova forma
mais agressiva de norma antielisão.
Depois, obteve do presidente da República a transformação da Secretaria
da Receita Federal em órgão com mais
poderes que qualquer ministério e independência maior que o Banco Central.
Por fim, com o decreto nš 4.489, de 29/
11/2002, transferiu a "guarda" do sigilo
bancário dos brasileiros das instituições
financeiras para a própria Receita Federal. A partir de agora, estão eles "protegidos" por quem tem como dever desconfiar do pagador de tributos.
Considero razoável que os agentes fiscais desconfiem dos contribuintes, pois
sua função é obter receita, e, quando se
tem uma carga tributária escorchante
como a do Brasil (37% do PIB), em país
que presta sofríveis serviços públicos, a
única forma de fazer o depauperado
contribuinte cumprir as sufocantes
obrigações fiscais é aterrorizá-lo com
medidas totalitárias.
O terror fiscal não gera desenvolvimento e faz com que o contribuinte adote caminhos paralelos e informais de sonegação
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A história tem demonstrado que
quanto mais desmedida é a carga tributária, em determinados espaços geográficos ou períodos históricos, sua arrecadação só é assegurada pelo terror fiscal.
Ocorre, todavia, que o terror fiscal não
gera desenvolvimento, mas fuga de capitais, e faz com que o contribuinte, em
verdadeiro estado de necessidade, adote
caminhos paralelos e informais de sonegação e de corrupção deslavada, sobre fragilizar as instituições e o país, pelo viés da desconfiança gerada entre as
autoridades e o povo.
Ora, o que o recente decreto criou foi a
última etapa desse terrorismo, ao determinar, por um ato não do Poder Legislativo, mas do Poder Executivo, a transferência da guarda do sigilo bancário
das instituições financeiras e do Banco
Central para a Receita. Outorgou o direito de dispor dessas informações a um
órgão que frequentemente atua de forma arbitrária, visto que toda a vez que
uma exigência fiscal é derrubada em juízo ou administrativamente, significa
que seus agentes agiram em desacordo
com a lei. E a Receita tem levado a
União a perder muitas ações.
A Receita Federal, por outro lado, não
é especialista em guardar sigilo de dados. Recentemente, mais de 1 milhão de
contribuintes brasileiros tiveram suas
declarações de renda "vendidas" em
bancas de ambulantes, por terem os dados "guardados" pela Receita sido "surrupiados de mansinho" -na linguagem irônica de Emílio de Menezes-
dos "inacessíveis arquivos da Fazenda".
Ora, até hoje o Tesouro Nacional não
descobriu os culpados de tal violência
contra o contribuinte e, curiosamente,
recebe como prêmio, do senhor presidente da República, a quebra de sigilo
com os dados -até então guardados
pelo sistema financeiro e pelo Banco
Central- transferidos para os vulneráveis arquivos da Receita Federal.
Ocorre mais do que isso. Passando a
deter todas as informações de todos os
cidadãos que movimentam pouco mais
de US$ 1.000 por mês, ninguém mais
poderá estar seguro. Comunicados em
"off", tais dados -inclusive os pertencentes a eminentes políticos ou cidadãos prestantes- poderão ser manipulados e utilizados para os mais escusos
propósitos. E, depois que os seus titulares tiverem os nomes veiculados pela
imprensa, por mais razão que tenham
para justificar seu patrimônio ou a movimentação realizada, jamais sua reputação será recuperada.
O governo Lula assumirá o país em
nome da cidadania. Que não fique prisioneiro dessa estrutura burocrática,
que, por mais bem-intencionada que tenha sido, na concepção do eminente secretário de busca desesperada dos superávits primários, não dignifica o país
nem honra as tradições democráticas, a
duras penas conquistadas. E que, em
nome do povo brasileiro, revogue o
malsinado decreto nš 4.489/02.
Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades
Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do
Estado-Maior do Exército.
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