São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O maior poder da República

IVES GANDRA MARTINS

A administração tributária do eficiente secretário da Receita Federal, nos dois últimos anos, fez com que esse órgão fosse, lentamente, transformado no maior poder da República, a que todos os 170 milhões de brasileiros devem prestar reverência e se curvar a tudo o que venha a exigir, legal ou ilegal.
Os ataques aos direitos fundamentais do contribuinte começaram a ser delineados, em começos de 2001, quando as leis complementares 104 e 105 alteraram o Código Tributário Nacional, ao arrepio da Constituição, embora nenhum dos autores dos respectivos projetos de lei tivesse os títulos e os conhecimentos dos pais do direito tributário brasileiro, que formataram referido código (lei nš 5.172/66): Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhôa Canto, Carlos da Rocha Guimarães, Tito Rezende e Aliomar Baleeiro, entre outros.
Pela lei complementar nš 104/01, ofertou-se aos agentes fiscais o direito de desconsiderar leis tributárias aprovadas pelo Congresso Nacional, adotando aquela de sua preferência pessoal, sempre que, entre dois atos legislativos de possível escolha pelo contribuinte, este preferir seguir aquele que assegure menor peso impositivo.
A isso se denominou "norma antielisão", que, apesar de permitida em grande parte dos países -como reitera a Receita Federal-, sua contestação nessas nações é tão grande que são pouquíssimos os casos em que efetivamente é aplicada. Vale dizer, aquilo que não "pegou" nos países civilizados entendeu a Receita que deva "pegar" no Brasil.
Pela lei complementar nš 105/01, pretendeu o eminente secretário -a quem rendo as homenagens de ter servido de "avalista" do Brasil no FMI, ao obter os famosos superávits primários e evitar o descompasso orçamentário- substituir o Poder Judiciário pelo agente fiscal em matéria de sigilo bancário. Afastou, portanto, o poder neutro -capaz de permitir a quebra do sigilo do sonegador e de proteger o bom contribuinte contra o arbítrio fiscal- e transferiu esse poder para quem tem por dever funcional suspeitar permanentemente dos "produtores de tributos".
Duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a validade das referidas leis estão adormecidas no Supremo Tribunal Federal, há quase dois anos, apesar de ter havido pedido de urgência nas medidas cautelares propostas.
Posteriormente, a Receita Federal procurou -em nível, agora, de legislação ordinária- ofertar ainda maior força aos senhores agentes fiscais, de forma que, se o contribuinte, agindo sem dolo, sem fraude e sem má-fé, adotasse, entre duas leis vigentes e aprovadas pelo Congresso, aquela de menor peso impositivo, deveria pagar o tributo calculado pela norma que hospedasse a maior carga tributária. Os deputados federais derrubaram essa nova forma mais agressiva de norma antielisão.
Depois, obteve do presidente da República a transformação da Secretaria da Receita Federal em órgão com mais poderes que qualquer ministério e independência maior que o Banco Central.
Por fim, com o decreto nš 4.489, de 29/ 11/2002, transferiu a "guarda" do sigilo bancário dos brasileiros das instituições financeiras para a própria Receita Federal. A partir de agora, estão eles "protegidos" por quem tem como dever desconfiar do pagador de tributos.
Considero razoável que os agentes fiscais desconfiem dos contribuintes, pois sua função é obter receita, e, quando se tem uma carga tributária escorchante como a do Brasil (37% do PIB), em país que presta sofríveis serviços públicos, a única forma de fazer o depauperado contribuinte cumprir as sufocantes obrigações fiscais é aterrorizá-lo com medidas totalitárias.


O terror fiscal não gera desenvolvimento e faz com que o contribuinte adote caminhos paralelos e informais de sonegação


A história tem demonstrado que quanto mais desmedida é a carga tributária, em determinados espaços geográficos ou períodos históricos, sua arrecadação só é assegurada pelo terror fiscal.
Ocorre, todavia, que o terror fiscal não gera desenvolvimento, mas fuga de capitais, e faz com que o contribuinte, em verdadeiro estado de necessidade, adote caminhos paralelos e informais de sonegação e de corrupção deslavada, sobre fragilizar as instituições e o país, pelo viés da desconfiança gerada entre as autoridades e o povo.
Ora, o que o recente decreto criou foi a última etapa desse terrorismo, ao determinar, por um ato não do Poder Legislativo, mas do Poder Executivo, a transferência da guarda do sigilo bancário das instituições financeiras e do Banco Central para a Receita. Outorgou o direito de dispor dessas informações a um órgão que frequentemente atua de forma arbitrária, visto que toda a vez que uma exigência fiscal é derrubada em juízo ou administrativamente, significa que seus agentes agiram em desacordo com a lei. E a Receita tem levado a União a perder muitas ações.
A Receita Federal, por outro lado, não é especialista em guardar sigilo de dados. Recentemente, mais de 1 milhão de contribuintes brasileiros tiveram suas declarações de renda "vendidas" em bancas de ambulantes, por terem os dados "guardados" pela Receita sido "surrupiados de mansinho" -na linguagem irônica de Emílio de Menezes- dos "inacessíveis arquivos da Fazenda".
Ora, até hoje o Tesouro Nacional não descobriu os culpados de tal violência contra o contribuinte e, curiosamente, recebe como prêmio, do senhor presidente da República, a quebra de sigilo com os dados -até então guardados pelo sistema financeiro e pelo Banco Central- transferidos para os vulneráveis arquivos da Receita Federal.
Ocorre mais do que isso. Passando a deter todas as informações de todos os cidadãos que movimentam pouco mais de US$ 1.000 por mês, ninguém mais poderá estar seguro. Comunicados em "off", tais dados -inclusive os pertencentes a eminentes políticos ou cidadãos prestantes- poderão ser manipulados e utilizados para os mais escusos propósitos. E, depois que os seus titulares tiverem os nomes veiculados pela imprensa, por mais razão que tenham para justificar seu patrimônio ou a movimentação realizada, jamais sua reputação será recuperada.
O governo Lula assumirá o país em nome da cidadania. Que não fique prisioneiro dessa estrutura burocrática, que, por mais bem-intencionada que tenha sido, na concepção do eminente secretário de busca desesperada dos superávits primários, não dignifica o país nem honra as tradições democráticas, a duras penas conquistadas. E que, em nome do povo brasileiro, revogue o malsinado decreto nš 4.489/02.

Ives Gandra da Silva Martins, 67, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército.


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