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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Saddam e Sofie

A única coisa boa que poderia acontecer na Guerra do Iraque aconteceu: a prisão de Saddam. Ele foi um ditador cruel, uma sanguinária presença, invadiu o Irã e o Kuait, usou armas químicas contra os curdos e provocou um terror internacional ameaçando com armas de destruição em massa que não tinha. Esse blefe foi o argumento para a invasão do seu país. Assassinou adversários e fez expurgos entre seus próprios adeptos, com a liquidação até mesmo de membros de sua família, como os genros. Deve ser julgado pelos crimes que cometeu, para exemplo de todos os tiranos. Na minha cabeça, não passa a pena de morte, pois sou totalmente contra ela.
Esse conflito teve aspectos de toda ordem, dos mais cruéis, como Saddam, à linguagem usada para suas batalhas. Veja-se o nome que deram à operação da captura do ex-ditador iraquiano: Alvorada Vermelha. Por que não dizer Prender Saddam? Não necessitaria de interpretações. Outras denominações são entre ridículas e sádicas: Causa Justa (invadir o Panamá), Restaurar Esperanças (Somália), Justiça Infinita, transformada em Liberdade Duradoura (no Afeganistão), Tempestade no Deserto (Guerra do Golfo). Nesse terreno, consideram Choque e Pasmo o maior sucesso do que chamam de "sloganeering"! A engenharia do slogan. O marketing da guerra.
Mas nome é sempre uma coisa complicada. Está na cabeça das pessoas. A primeira vez que seriamente me deparei com isso foi na fazenda do meu pai, com um vaqueiro de quem ele muito gostava, que tinha o nome de Ludgéro. Um dia, ele começou a explicar como o tratavam: "Uns me chamam Lúdgero, outros Ledgéro, outros Ledegéro, mas meu nome mesmo é Lodegero!".
Uma filha de uma amiga nossa era Raimunda. Vivia triste, como se carregasse uma triste sina. Todo aquele banzo era o nome. Não aceitava ser Raimunda. Quiseram chamar-lhe Mundica, Dica, Diquinha e ela foi ficando cada vez mais revoltada. Quando chegou a puberdade, houve uma crise. Ameaçava matar-se: "Já sou mulher, quero ter nome". Sua mãe disse-lhe que escolhesse outro, e ela o fez: "Sofie Marie Flor da Conceição". Como Sofie ficou feliz, casou e só nós, os mais velhos, lembramos que era Diquinha.
Na política é pior. Programa carimbado como de um governo não tem sobrevivência em outro. O "programa do leite" sobreviveu porque era do leite e leite é leite. Já a tal Lei Sarney não durou seis meses. Durante 20 anos, trabalhei por incentivos à cultura. Os generosos artistas brasileiros, sem que estivesse na lei, deram o nome de Lei Sarney. O presidente que chegou não fez outra. Colocou logo o nome de Lei Rouanet, que foi excelente ministro da Cultura e é meu amigo. Acredito que a causa da campanha contra a ferrovia Norte-Sul tenha sido o nome. Se tivesse sido Sul-Norte ou São Paulo-Belém, tudo teria sido diferente.
Em 1894, Machado de Assis avançava no estudo das mudanças de nome, maneira de dar "sola nova e tacão direito". É o que vão fazer com o Calha Norte, que cresceu, viveu, morreu e ressuscitou. O projeto foi criado para ocupar as fronteiras vazias da própria calha norte do Amazonas e assistir suas populações pobres.
Como a Raimunda que se tornou Sofie, vai ser Projeto Fronteira e, assim, terá mais vida. É bom que seja assim. Os nomes podem ir, mas que fiquem as idéias. Como Sofie, que continuou vivendo e feliz.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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