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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sobre as ditaduras constitucionais

CESAR MAIA

Os golpes de Estado e as revoluções que assaltavam o poder estão em desuso, não há dúvida. Mas há formas mais sutis de impor regimes autoritários, uma vez no poder.
Exemplo atual é o governo Chávez, que se poderia chamar, sem temer o paradoxo, de ditadura constitucional. As eleições diretas consagram e as primeiras semanas no poder são contagiantes. Nesse momento, que nome deveriam ter atos como convocar plebiscitos, dissolver o Parlamento, mudar a Constituição ou reeleger o presidente e o Congresso? Imagine se Bush, 15 dias depois da ocupação de Bagdá, fizesse isso. Do que seria chamado?


Que o processo político no Brasil, hoje, aponta objetivamente para uma dinâmica autoritária não resta nenhuma dúvida


Há exemplos para todos os gostos. O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães viveu uma dura luta interna em 1932. Três alas disputavam a hegemonia: os que queriam aderir à fórmula majoritária proposta pelo presidente Hindenburg; os que queriam assaltar o poder com as SA, tropas de choque nazis; e os chamados legalistas, que só aceitavam chegar ao poder dentro da Constituição e firmavam a posição de só concordar em formar maioria parlamentar ocupando a chancelaria.
Este último grupo era liderado por Adolf Hitler. Em 31 de janeiro de 1933 ele dobrou o grupo do presidente Hindenburg e, com maioria parlamentar, foi consagrado primeiro-ministro. Montou o gabinete mais heterogêneo possível e nem sequer deu muita importância aos ministérios da área econômica, que manteve sem discussão. Depois, de plebiscito em plebiscito, foi dando um verniz constitucional ao governo autoritário que implantou.
Napoleão 3º não fez diferente. Surpreendeu a muitos numa época em que não havia pesquisas de opinião e chegou ao poder pelo voto. Em pouco tempo, impacientou-se com as regras do jogo democrático e, através de um plebiscito, conseguiu respaldo para fechar o Parlamento. Em seguida, com o mesmo método, reimplantou o império. Tudo dentro das formalidades.
Na América do Sul está na moda derrubar governos usando a pressão popular e o apoio parlamentar. Foram cinco nos últimos cinco anos. Não há por que não usar a expressão "prevenção" no caso das democracias. E o Brasil precisa adotar com urgência medidas preventivas, antes que o caldo derrame. Para isso basta listar os genéricos das modalidades de golpes constitucionais.
Um desses genéricos é a desmoralização do Poder Judiciário. Usam-se as exceções como pretexto e inicia-se um processo de denúncias, críticas e deslegitimação daquele Poder até se conseguir, por afastamento voluntário ou compulsório, impor uma nova maioria a ele, especialmente na Corte Suprema. Isso valeu tanto para a fórmula suave de Menem como para a fórmula dura de Fujimori. E Kirchner se assanha na mesma direção.
Há os genéricos da desmoralização da administração pública, tão usada entre nós por Collor com o nome fantasia de "marajás", como também por Hitler e outros. Há os genéricos da propaganda política e respectiva manipulação da opinião pública, quando se transforma a comunicação de governo em um superministério, em uma supermáquina com super-recursos. Goebbels vive? Há os genéricos da desmoralização do Poder Legislativo. Estes são os mais usados e os tipos são amplamente diversificados. Eles vão desde o uso e abuso dos plebiscitos, passam pela manipulação ou compra de maiorias, pelo esmagamento do regimento parlamentar, até o cerco dos próprios parlamentares.
Este último genérico é de dois tipos. Um deles é mobilizar as massas e usá-las como meio de pressão incontrolável sobre o Parlamento. Em geral, os governos populistas usam esse genérico com grande competência. Chávez assim o fez, assim como o fizeram as forças políticas que apoiavam Allende. O outro tipo desse genérico é usar uma força política não-parlamentar para inibir o Parlamento e mostrar que a origem da deliberação não está nele, mas nessa força. É o caso, por exemplo, da reunião sistemática de governadores, que, por estarem no time, por ingenuidade ou por ilusão de participação, dispõem-se a fazer esse jogo. É como se o Parlamento, ninho da legitimidade popular, devesse apenas referendar o que querem os governadores. Dessa forma, o cidadão, através da soberania popular representada para isso no Parlamento, fica expelido do processo e tudo passa a ser um debate vertical dentro do Estado entre as duas esferas de Poder Executivo.
Reflitam bem se há exemplo disso em países democráticos e desenvolvidos, onde há governos estaduais. Mirem-se nos exemplos dos Estados Unidos, Alemanha, Espanha... Hermes Lima dizia que "o homem no poder sofre, em grau menor ou maior, três ilusões capitais: a ilusão de que tudo pode, a ilusão de que tudo sabe e a ilusão de que seu poder jamais terminará" ("O Complexo de Ataxerxes", Idéias e Figuras, 1957).
Não nos cabe garantir intenções e maquiavelismos. Mas que o processo político no Brasil, hoje, aponta objetivamente para uma dinâmica autoritária não resta nenhuma dúvida. Nem creio que o presidente, em sua singeleza, se dê conta disso. Hoje essa dinâmica começa a ter vida própria nos atos e fatos. E, para eles, o melhor é aplicarmos, enquanto é tempo, doses triplas de contragenéricos de prevenção democrática.

Cesar Maia, 58, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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