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São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As idéias de Mário de Andrade

ARNALDO NISKIER

Como pode um homem que demonstrou profundo descaso com a gramática ser considerado um dos mitos da literatura brasileira? Pois é exatamente isso o que ocorre com o escritor modernista Mário de Andrade, um dos responsáveis pela grande repercussão da Semana de 22, evento que marcou época nos diversos segmentos culturais brasileiros.


Aos menos atentos, fica a impressão de que o verbo amar só poderia ser classificado de transitivo


Até hoje, no início do século 21, sua obra é muito lembrada, sendo objeto de teses, livros, estudos e debates, quase sempre polêmicos.
Apesar do talento indiscutível de Mário de Andrade, a sua aversão sistemática à língua portuguesa é um aspecto que deve ser lembrado, sobretudo nos meios acadêmicos. Em geral, nossos talentos literários admiram e respeitam a língua portuguesa em suas obras. Quando nos propomos a levantar essa questão, é mais no sentido de registrar um tema para a história, como trabalho de pesquisador. No final, estará sempre implícita a intenção de lutar pela utilização correta da nossa língua, também respeitada como inculta e bela.
Por incrível que pareça, quando estudante o modernista era um verdadeiro fracasso na maioria das matérias e só se destacava em... português. Por ironia do destino, quando adulto, tornou-se um de seus maiores críticos.
Observando o que ele falava a respeito da língua portuguesa, uma contradição nos parece bem visível: no fundo, ele buscava o aperfeiçoamento da língua, só que caminhava o tempo todo na direção contrária. Essa conclusão tem a ver com o pequeno trecho de uma carta enviada a Manuel Bandeira. Vejam as observações do criador do modernismo:
"Não posso ir fazendo no silêncio e no trabalho oculto toda uma gramática brasileira pra depois de repente, pá, atirar com isso na cabeça do pessoal.
Preciso que os outros me ajudem porquê confesso com toda a franqueza, embora não seja um ignorante em questões da língua, e possa afirmar gritado que sei o português duma forma acima do comum, não sou forte no caso. Não sou. Careço que os outros me ajudem pra que eu realize a minha intensão: ajudar a formação literária, isto é, culta da língua brasileira".
Isso sem contar um estranho processo de colocar vírgulas.
É claro que a argumentação carece de consistência e credibilidade. Ele próprio admite que não se sentia à altura de tal empreitada. Pormenor: as palavras "porquê" e "intensão" foram assim escritas por Mário de Andrade. Por conta de suas idéias, o próprio Manuel Bandeira, que era partidário de um abrasileiramento do nosso português literário, acabou, de uma certa forma, apoiando as propostas de Mário de Andrade.
Um capítulo à parte é "Amar, Verbo Intransitivo", em que o escritor faz um jogo de palavras a partir de um possível erro de gramática contido no título. Aos menos atentos, fica a impressão de que o verbo amar só poderia ser classificado de transitivo, já que na maioria dos seus significados existe a necessidade de um complemento. Mas sabemos que ele é passível de intransitividade, quando significa, por exemplo, "ter amores", "estar enamorado" ou "praticar o ato sexual". É clara a intenção de Mário de Andrade, com sua obra, de criticar as relações das famílias burguesas paulistanas da sua época. E acabou conseguindo, com um livro que ficou marcado não só pela história polêmica, mas também pelo título.
Para Manuel Bandeira, certos aspectos da personalidade de Mário de Andrade eram difíceis de ser explicados. O pior é que ele não sabia se os classificava como qualidade ou como defeito. Bandeira acabou dando um veredicto positivo em relação ao autor de "Macunaíma", nesta afirmação: "O seu orgulho, por exemplo, que era imenso, mas frequentemente se exprimia em formas de aparente humildade, que a ele próprio intrigavam". Ou então, quando defende que sua obra é imperecível, por dois motivos: "Pelo seu valor intrínseco e pelo que há nela de interesse social. Mário foi o brasileiro que mais se esforçou na tarefa de "patrializar" a nossa terra".

Arnaldo Niskier, 68, educador, membro da Academia Brasileira de Letras e conselheiro do Instituto Metropolitano de Altos Estudos, é autor de, entre outras obras, "Shach: As Lições de um Sábio". Foi presidente da ABL (1998-99) e secretário de Ciência e Tecnologia (1968-71) e de Educação e Cultura (1979-83) do Estado do Rio de Janeiro.


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