São Paulo, terça-feira, 20 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS E DEBATES

Pelo respeito ao desejo dos índios

SALOMÃO CRUZ E HAROLDO AMORAS

A denominada terra indígena Raposa/Serra do Sol fica nas fronteiras do Brasil com a Venezuela e com a República da Guiana. São 1,7 milhão de hectares, que, somados às terras indígenas São Marcos -654 mil hectares- e Ianomâmi -17,7 milhões de hectares (9,4 milhões no Brasil e 8,3 milhões na Venezuela)-, perfazem mais de 20 milhões de hectares de terras indígenas contínuas, nas fronteiras entre os três países.
Considerando-se as unidades de conservação brasileiras, os parques nacionais venezuelanos e a área reivindicada pela Venezuela do território guianense -área de reclamação-, são mais de 50 milhões de hectares de uso limitado, onde também se prega a soberania restrita de cada país. Com esses propósitos, setores da sociedade nacional e internacional pressionam o governo brasileiro, querendo fazer crer que a questão Raposa/Serra do Sol é uma disputa entre o grande capital e os índios -"girondinos" versus "jacobinos"- da região.
Na área em questão há uma população de aproximadamente 20 mil habitantes -índios e não-índios- que coexistem há mais de dois séculos. São sete núcleos urbanos e centenas de ocupações rurais, representando investimentos públicos e privados de milhões de reais.
As 207 ditas "fazendas" cadastradas pela Funai (Fundação Nacional do Índio), muitas com títulos de propriedade emitidos pelo governo federal -à exceção de oito com rebanhos bovinos acima de mil animais- possuem, em média, 250 animais. São criatórios extensivos, formados por agentes econômicos de origem proletária, financiados por excedentes físicos gerados na abundância do fator terra e pela utilização da mão-de-obra indígena. Isso é uma realidade específica e incontestável da formação socioeconômica local.


Existe [...] forte interação social na região Raposa/ Serra do Sol. Por isso a maioria dos índios ali teme o isolamento


Os "fazendeiros" da região Raposa/ Serra do Sol, diferentemente dos bichos-papões veiculados na mídia nacional e internacional, na verdade são retirantes de origem nordestina, muitos aqui chegados no "boom" da exploração do látex amazônico, ou mestiços ali nascidos e seus descendentes. Ontem guardiões da fronteira, agora são atirados na fogueira destinada aos impiedosos capitalistas e aos cruéis grileiros, comuns no modelo de desenvolvimento idealizado para a Amazônia, embora nunca tenham sido financiados pela Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia).
Na realidade, em bases capitalistas há os produtores de arroz, que desde 1985 produzem em 15 mil hectares de várzeas, com uma das maiores produtividades brasileiras, e são responsáveis pela única atividade agroindustrial efetivamente competitiva de Roraima.
O governo federal chamou a si -está na Constituição- a responsabilidade para gerir as questões indígenas e minerais. Portanto o direito do índio à terra é inquestionável. Os critérios e parâmetros para definir o tamanho dessas reservas certamente são discutíveis. E por que não discuti-los?
A sociedade de Roraima apóia a demarcação da reserva indígena e isso é essencial. A polêmica nasce dos critérios utilizados, que são os mesmos na demarcação da área ianomâmi -índios que vivem ainda no período paleolítico e isolados- e na de áreas como a Raposa/Serra do Sol, cujas comunidades interagem de forma permanente e contínua com o restante da sociedade há mais de dois séculos.
Existe sim, e ninguém desconhece, forte interação social na região Raposa/ Serra do Sol. Por isso a maioria dos índios ali residentes teme o isolamento e não quer a "involução" -para usar uma expressão das próprias lideranças indígenas contrárias à demarcação na forma proposta. Para essas, mente o presidente da Funai quando diz na imprensa nacional que elas não representam mais do que 20% da população indígena. A seu favor, pedem a realização de um plebiscito organizado pelo governo federal para pôr fim à polêmica. Por que não fazê-lo?
A reivindicação feita pela sociedade de Roraima é que seja cumprido o despacho número 80 do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, de 20 de dezembro de 1996, que diz que "o relatório antropológico não está devidamente circunstanciado, inobservando as regras da portaria MJ n.º 14/96" e que "foram acostados ao processo documentos imprestáveis e não condizentes com a verdade dos fatos".
Por essas e outras razões de ordem legal, o então ministro mandou excluir as áreas urbanas do município de Uiramutã, das vilas do Surumú, Água Fria, Socó e Mutum, bem como os títulos definitivos concedidos pelo governo federal, além das áreas de produção de arroz irrigado e vias públicas -rodovias federais, estaduais e municipais. Isso significa menos de 15% da área pretendida para a homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol.
Se assim proceder, o governo certamente tomará uma decisão que solucionará o conflito interétnico ora latente.

Salomão Cruz, 53, geólogo, é vice-governador de Roraima (PSB). Haroldo Amoras, 51, é mestre em economia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor do departamento de economia da UFRR (Universidade Federal de Roraima)


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