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São Paulo, quinta-feira, 20 de fevereiro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Metafísica da traição

Quando um intelectual esclarecido e com origem progressista -Fernando Henrique- chegou à Presidência da República, muitos anteviram uma era de reformas sociais que corrigiria as desigualdades históricas no país. Frustraram-se. O mesmo destino parece reservado aos que requentaram suas esperanças com a eleição de um líder popular e de esquerda como Lula.
A reação intuitiva é considerar que esses políticos, uma vez eleitos, traem seus compromissos de campanha. Deixam-se envolver pelos esquemas de poder e chantagens do mercado. Pode haver alguma verdade nisso, mas parece óbvio que existem razões estruturais, que vão muito além da boa vontade subjetiva dos governantes, a tolher sua disposição de promover mudanças.
O Estado provedor de bem-estar social, que havia sido a grande obra da esquerda democrática no pós-Guerra, sucumbiu sob o próprio peso. O aumento mesmo da longevidade, que ele ajudou a produzir, terá sido responsável em parte por sua implosão. Os Estados perderam capacidade de investir e passaram a depender cada vez mais dos fluxos erráticos de capital.
Instalou-se ao mesmo tempo uma dinâmica competitiva, segundo a qual é premiado quem reduz ônus e oferece mais vantagens ao capital arisco e escasso. Isso levou ao enfraquecimento das fronteiras entre as economias nacionais e à derrubada de barreiras protecionistas. No plano interno das nações, levou à queda de regulações corporativas e direitos trabalhistas.
Governos de esquerda que chegaram ao poder na década de 90 tiveram de se curvar a essa realidade sob pena de aumentar a ineficiência de suas economias em relação a outras mais abertas e dinâmicas. Foi o que aconteceu, por exemplo, na França e na Inglaterra, como já havia ocorrido, nos anos 80, na Espanha e em Portugal. Ou seja, ex-socialistas a praticar políticas liberais.
O sociólogo esloveno Slavoj Zizek, de quem o suplemento Mais! tem publicado artigos, assinala uma curiosa inversão. A esquerda democrática passou a ser gestora das economias de mercado, propugnando por valores estranhos à sua tradição, tais como eficiência e modernização tecnológica. E forças da direita tradicional encarnam a defesa do que restou da classe trabalhadora, não raro com acento xenófobo e autoritário.
No âmbito brasileiro, a adesão do governo Lula à ortodoxia econômica de mercado, cada vez mais patente, faz recordar as excêntricas teses de outro sociólogo, Gilberto Vasconcellos, subitamente reatualizadas. Para esse intelectual nacionalista, hoje radicado em Minas, tucanos e petistas são como dois braços de um mesmo fenômeno, o capitalismo paulista.
Avenida Paulista e sindicalismo do ABC seriam, de acordo com essa visão algo fantástica, aparelhos políticos a expressar o setor da economia brasileira mais integrado à economia internacional. A experiência aconselha reserva em face desses esquemas explicativos que resvalam pela metafísica sociológica. Mas é o caso de ponderar que, "se non è vero, è bene trovato" (se não é verdade, é bem achado).


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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