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OTAVIO FRIAS FILHO
Metafísica da traição
Quando um intelectual esclarecido e com origem progressista
-Fernando Henrique- chegou à
Presidência da República, muitos anteviram uma era de reformas sociais
que corrigiria as desigualdades históricas no país. Frustraram-se. O mesmo destino parece reservado aos que
requentaram suas esperanças com a
eleição de um líder popular e de esquerda como Lula.
A reação intuitiva é considerar que
esses políticos, uma vez eleitos, traem
seus compromissos de campanha.
Deixam-se envolver pelos esquemas
de poder e chantagens do mercado.
Pode haver alguma verdade nisso,
mas parece óbvio que existem razões
estruturais, que vão muito além da
boa vontade subjetiva dos governantes, a tolher sua disposição de promover mudanças.
O Estado provedor de bem-estar social, que havia sido a grande obra da
esquerda democrática no pós-Guerra,
sucumbiu sob o próprio peso. O aumento mesmo da longevidade, que ele
ajudou a produzir, terá sido responsável em parte por sua implosão. Os Estados perderam capacidade de investir e passaram a depender cada vez
mais dos fluxos erráticos de capital.
Instalou-se ao mesmo tempo uma
dinâmica competitiva, segundo a qual
é premiado quem reduz ônus e oferece mais vantagens ao capital arisco e
escasso. Isso levou ao enfraquecimento das fronteiras entre as economias
nacionais e à derrubada de barreiras
protecionistas. No plano interno das
nações, levou à queda de regulações
corporativas e direitos trabalhistas.
Governos de esquerda que chegaram ao poder na década de 90 tiveram
de se curvar a essa realidade sob pena
de aumentar a ineficiência de suas
economias em relação a outras mais
abertas e dinâmicas. Foi o que aconteceu, por exemplo, na França e na Inglaterra, como já havia ocorrido, nos
anos 80, na Espanha e em Portugal.
Ou seja, ex-socialistas a praticar políticas liberais.
O sociólogo esloveno Slavoj Zizek,
de quem o suplemento Mais! tem publicado artigos, assinala uma curiosa
inversão. A esquerda democrática
passou a ser gestora das economias de
mercado, propugnando por valores
estranhos à sua tradição, tais como
eficiência e modernização tecnológica. E forças da direita tradicional encarnam a defesa do que restou da classe trabalhadora, não raro com acento
xenófobo e autoritário.
No âmbito brasileiro, a adesão do
governo Lula à ortodoxia econômica
de mercado, cada vez mais patente,
faz recordar as excêntricas teses de
outro sociólogo, Gilberto Vasconcellos, subitamente reatualizadas. Para
esse intelectual nacionalista, hoje radicado em Minas, tucanos e petistas
são como dois braços de um mesmo
fenômeno, o capitalismo paulista.
Avenida Paulista e sindicalismo do
ABC seriam, de acordo com essa visão
algo fantástica, aparelhos políticos a
expressar o setor da economia brasileira mais integrado à economia internacional. A experiência aconselha reserva em face desses esquemas explicativos que resvalam pela metafísica
sociológica. Mas é o caso de ponderar
que, "se non è vero, è bene trovato"
(se não é verdade, é bem achado).
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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