São Paulo, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A falácia do controle externo

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Alguns países parlamentaristas, onde a separação dos Poderes não é tão nítida, têm o controle externo. Foi adotado, em alguns deles, para proteção do Poder Judiciário, quase sempre subordinado ao Ministério da Justiça.
Na França de Montesquieu, não só essa separação é manifestamente menos clara, como a Justiça é um órgão da administração pública, embora com certa autonomia.
Há alguns anos, foi feita uma pesquisa -creio que pelo jornal "Le Figaro"- em que, dos quatro Poderes da República (chefia de governo, chefia do Estado, Parlamento e Poder Judiciário), o mais criticado pelos franceses era o Judiciário. E os franceses indicavam como a causa principal (em torno de 70% dos pesquisados) o controle externo, que tirava a independência do magistrado.
É que, nos sistemas parlamentares de governo, o Executivo tem origem no Legislativo, e o chefe da nação, que pode ser eleito diretamente (França) ou pelo Parlamento (Itália), tem o direito de dissolver o Congresso, por antecipação, criando um sistema de mútuos controles. A administração da Justiça conforma-se, pois, não à separação dos sistemas presidenciais, mas à integração dos Poderes.


Cada Poder deve ter independência para exercer suas funções constitucionais sem pressões externas


Ora, o constituinte nacional colocou, como cláusula pétrea, a separação de Poderes, estando o artigo 60, parágrafo 4º, inciso 3º, da lei suprema, assim redigido: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] a separação dos Poderes".
Mesmo que o Congresso aprovasse emenda constitucional em andamento no Parlamento, o Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe a guarda da Constituição, poderia declarar tal emenda inconstitucional, porque o seria de fato, por afetar a separação dos Poderes, visto que, no projeto governamental, o Poder Legislativo terá assento no órgão de controle, tanto o Senado como a Câmara dos Deputados.
Ora, se a separação dos Poderes é cláusula pétrea, sendo a função do Poder Judiciário, na própria Constituição, aquela de julgar os atos dos outros Poderes e dos cidadãos em geral nas suas relações e naquelas com o poder público, como admitir que essa separação seja turbada com a presença de senador e deputado, ou seu representante, no referido órgão?
Tenho para mim -assim também pensando Saulo Ramos, notável causídico e discípulo predileto de Vicente Rao, que nele reconhecia o talento de grande jurista- que o referido controle, se aprovado, seria manifestamente inconstitucional, em que pese a manifestação contrária do brilhante futuro presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, posição reconhecidamente minoritária dentro da magistratura.
O problema, todavia, que me impressiona é que, a título de focar o controle externo do Poder Judiciário -entre 13 mil magistrados, os casos de suspeição de corrupção estão em torno de 0,01%, percentual consideravelmente inferior aos escândalos quase diários que espoucam nos outros Poderes-, são escondidos os verdadeiros problemas que ele enfrenta, que são excesso de recursos processuais, excesso de instâncias e escassez de recursos financeiros e de magistrados.
A isso se acrescenta a atuação aética dos Poderes Executivos da União, Estados e municípios, que entulham os tribunais com recursos repetitivos e sem chance de resultado favorável, por contrariarem jurisprudência pacífica contra o poder público -e que representam 70% dos processos em tramitação.
Eu sempre disse que a "caixa preta" do Judiciário está, na verdade, no Executivo e nos recursos ilegítimos propostos com objetivo de retardar pagamentos que deve à sociedade. Os precatórios não-pagos são a inequívoca demonstração dessa atuação condenável.
Por essa razão é que o governo federal não pretende a adoção da súmula vinculante -ou do efeito vinculante das decisões judiciais-, visto que tal procedimento abreviaria as longas demandas, das quais são os grandes beneficiários.
Ora, se conseguir aprovar o controle externo, com direito, inclusive, de demitir magistrados antes do trânsito em julgado das ações que presidem, reduzirá, consideravelmente, a independência do Judiciário. Correr-se-á, então, o risco de ficar a sociedade à mercê de um Legislativo e de uma burocracia cada vez menos profissionalizada, esvaziando-se o direito de defesa do cidadão.
Sou contrário ao controle externo, embora favorável ao Conselho Nacional da Magistratura composto só de magistrados. Sou também favorável à melhora do sistema de corregedorias do Ministério Público, de criação de legislação mais efetiva para o controle da advocacia por seus tribunais de ética. Sou favorável a que se melhorem as corregedorias das polícias Federal (Ministério da Justiça) e estaduais, assim como das secretarias do Tesouro (Receita Federal, fazendas estaduais e fazendas municipais).
Cada Poder, todavia, deve ter a independência necessária para exercer suas funções constitucionais sem pressões de natureza externa, que maculariam o regime de separação e terminariam por atingir as liberdades democráticas dos cidadãos, em benefício exclusivo dos governantes.

Ives Gandra da Silva Martins, 68, advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.


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