São Paulo, sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Restauração burocrática

EDUARDO GRAEFF

O governo Lula pode ainda não saber direito o que fazer, mas já sabe que, para fazer seja o que for, vai precisar de mais 2.797 cargos de confiança e 41 mil funcionários efetivos, só nos próximos meses.
As justificativas apresentadas são primárias. Haveria um "déficit institucional" traduzível em tantos cargos de confiança. "Perdemos" tantos funcionários nos quadros permanentes da administração federal. O serviço público teria sido "sucateado" nos últimos anos.
Errado. Na verdade, a política de recrutamento e aumentos diferenciados de salários do governo FHC, tão combatida pelo PT na oposição, permitiu preservar e até reforçar áreas estratégicas da administração, apesar das restrições fiscais.
Tanto falta como sobra pessoal em certas áreas da administração e em alguns Estados. Uma proposta de reforma deveria no mínimo identificar as sobras e dizer como remanejá-las.
Mas não dá nem para começar a discutir a sério se há muitos ou poucos funcionários, aqui ou ali, sem uma visão estratégica do Estado brasileiro e de seu papel no desenvolvimento do país.


O que se vê é um processo de restauração burocrática, que dá vida nova às piores tradições patrimonialistas


Para continuar ou mudar os rumos da reforma iniciada por Luiz Carlos Bresser Pereira, o governo Lula teria que enfrentar questões como: 1) levar adiante, com eficiência, a descentralização de funções administrativas da União para os Estados e municípios; 2) idem a participação da sociedade civil, incluindo empresas e ONGs, na execução de obras e políticas públicas; 3) aplicar mais e melhor as tecnologias de informação, para dar eficiência e transparência à gestão pública; 4) generalizar os processos de avaliação e ligá-los a incentivos e sanções efetivas, para melhorar o desempenho da máquina.
O governo não divulgou até agora nenhum papel ou discurso que dê sua visão geral dessas questões. E o que se filtra de ações e declarações pontuais são sinais de retrocesso.
Retrocesso na descentralização. Em educação, por exemplo, com a retenção de parcela do salário-educação para o governo federal comprar e distribuir uniformes. Ou em infra-estrutura, com a exigência de que os Estados submetam ao governo seus projetos para aplicação dos recursos da Cide. Ficou meio esquecida a idéia da ex-ministra Benedita da Silva de criar escritórios federais de assistência social pelo país afora. É bom conferir se, na surdina, a idéia não anda. Seja como for, o governo tem dado sinais de que vai buscar formas de contornar os Estados na execução dos programas sociais de potencial eleitoreiro.
Retrocesso na divisão de atribuições com a sociedade. A crítica do governo à terceirização ecoa a fúria dos sindicatos, para os quais a contratação de funcionários parece um prêmio de consolação: se não tem aumento de salário, pelo menos trocam-se os terceirizados por estatutários de carteirinha, revigorando a noção de monopólio estatal das funções públicas. Em infra-estrutura, enquanto a mão direita do governo acena para os empresários com as Parcerias Público-Privadas, a esquerda passa o trator sobre as agências reguladoras e faz uma opção reestatizante no setor elétrico. Na área social, Zilda Arns andou vocalizando o mal-estar de milhares de ONGs com as práticas aparelhistas-centralistas do PT, que ameaçam sufocar formas das mais promissoras de participação social e democratização do Estado.
Retrocesso no governo eletrônico. Enquanto se entretinha com idéias (até interessantes) sobre software livre, o governo levou um ano patinando na tarefa prosaica de unificar os cadastros de beneficiários dos programas de transferência de renda. E os navegantes mais atentos começam a notar a degradação da informação disponibilizada pelos ministérios na internet.
Retrocesso na avaliação. Se não é o "companheirismo" partidário-sindical, é a necessidade de acomodar aliados que serve de desculpa para o loteamento irrestrito da máquina, em detrimento da exigência de desempenho, inclusive de ministros. A tentativa de acabar com o Exame Nacional de Cursos (Provão) é emblemática do horror corporativista à avaliação objetiva do desempenho das instituições estatais. O projeto de lei que permitiria generalizar e dar conseqüência à avaliação de desempenho dos funcionários, obstruído pelo corporativismo na legislatura anterior, continua marcando passo na Câmara, à espera de "revisão" pelo governo.
Em suma, se agora falam em reforma, o que se vê na prática é um processo lento, mas progressivo, de restauração burocrática, que dá vida nova às piores tradições patrimonialistas do Estado brasileiro.

Eduardo Graeff, 54, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso.


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