São Paulo, sexta, 20 de março de 1998

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As outras invasões


O presidente, verdadeiro comandante de invasões, está promovendo sua reeleição com toda a força do Estado
EMIR SADER

As invasões são ilegais, injustas e injustificadas. Elas têm tornado insuportável nossa vida. Basta ver como os ministérios econômicos estão invadidos por gente originária dos grandes bancos privados e organismos econômicos internacionais, adversários dos interesses do Brasil, que atuam no território invadido como se estivessem na sua casa (ou melhor, no seu banco).
Passam do acampamento ao assentamento, usam veículos oficiais, recursos dos impostos pagos pelo povo para retribuir seus bancos de origem, preparam zelosamente seu retorno a eles e atuam no Estado brasileiro com absoluta impunidade. É inaceitável!
Olhe-se para o Congresso: está absolutamente invadido por empreiteiras, bancos privados, latifundiários, representantes de empresas privadas de saúde e seus ventríloquos. Por exemplo, um dos deputados, considerado "líder" formador de opinião, invadiu o Dnocs e levou para suas terras bombas para abastecê-las de água. Continua circulando impunemente por gabinetes presidenciais e parlamentares, sem nenhum mandado de prisão.
Partidos como PPB, PFL, PTB e PSDB parecem invadidos -ou habitados- por deputados escroques que só são expulsos quando pegos em flagrante delito, com câmeras e gravadores, e execrados pela grande imprensa. Os outros, ainda sem flagrante, seguem votando com o governo, preparando reeleições, vendendo "dobradinhas" para as campanhas deste ano e programando as tramóias do próximo mandato.
Na grande imprensa, então, nem se fala: as colunas econômicas, em lugar de ter defensores da cidadania, estão invadidas pelos porta-vozes dos planos econômicos oficiais, de cujas fontes dependem para não morrer à míngua, com a dignidade da independência, mas sem informações.
Não bastasse isso, os espaços na mídia estão invadidos pela campanha eleitoral de um candidato à reeleição, com seu lema de "Brasil em Ação", forjado em laboratórios de marketing privado (talvez até produto de nova invasão de James Carville, assessor de Clinton) e financiado com dinheiro público -aquele mesmo que o porta-voz diz faltar para a reforma agrária, para o salário dos professores, para a saúde.
Sem falar nos torturadores que, depois de invadir as casas de famílias indefesas, arrancar brasileiros que resistiam à ditadura e levá-los para os porões do Estado -invadidos por militares golpistas e torturadores-, continuam a ser nomeados para postos oficiais pelo presidente da República.
Em nossa economia, então, nem é bom falar. Como está invadida pelos capitais especulativos! Só neste ano, para júbilo de quem gosta de invasões, mais de US$ 11 bilhões para alimentar a ciranda financeira, a dívida pública e a fragilidade externa da economia.
Os capitais chegam atraídos pelos acenos dos mais altos juros reais do mundo, da inexistência prática de taxações e da certeza de que haverá reeleição, para a qual contribuem generosamente, invadindo a lista de contribuições para a campanha do candidato que favorece e incentiva as invasões.
Nossas terras estão invadidas por latifundiários -com documentos de posse frequentemente forjados-, que não as exploram e impedem que milhões de famílias sem terra produzam, para seu sustento e para alimentar a população.
Nossas cidades, infestadas de invasões de espaços públicos por condomínios privados e por seguranças particulares, também vivem invadidas pelas águas; as casas, pela falta de luz; o trânsito, pelo excesso de carros; as ruas e os prédios, pela insegurança; os presídios, pela sordidez e pelas inevitáveis rebeliões -tudo como resultado da invasão de desregulamentação que os governos têm imposto ao país.
Como complemento, nosso frágil sistema político está completamente inundado pelo poder do dinheiro e da corrupção. O presidente, verdadeiro comandante de invasões, dirigiu o processo de corrupção institucional ao promover sua reeleição com toda a força do Estado -dos recursos públicos extraídos da população que não sonega impostos, dos empregos e das sinecuras, sempre à custa dos interesses não atendidos da grande maioria.
A vontade popular, corrompida pela ruptura da regra do jogo, feita por um presidente que não cumpriu seu juramento de concluir um mandato de quatro anos -veja-se, com Menem e Fujimori, que dois é mais do que um e três é melhor do que dois-, é, além disso, violentada pela presença corrosiva do dinheiro nas campanhas, fazendo com que nossa "democracia" esteja à venda (quem dá mais?).
Com tantas invasões, nossa vida se torna insuportável. Nunca chegaremos a ter uma democracia. Solicita-se à Justiça do Brasil -ela mesma invadida por tantos interesses alheios, fazendo até aqui parte do problema- que proceda imediatamente a desalojar o Estado brasileiro dos invasores privatizantes dos espaços públicos, a grande imprensa das indevidas campanhas eleitorais com o dinheiro público, a economia do país das hordas de capitais especulativos, o campo brasileiro dos latifundiários -enfim, de todas as invasões, ilegais, injustas e injustificadas.

Emir Sader, 54, é professor do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "O Poder, Cadê o Poder?" (editora Boitempo) entre outros.



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