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São Paulo, terça-feira, 20 de maio de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A tragédia do povo brasileiro

O momento brasileiro precisa ser vivido e entendido à luz dos constrangimentos persistentes que enquadram e amesquinham o Brasil.
Avanços na história brasileira sempre foram liderados pela classe média. Ocorreram nos momentos em que ela deixou de ser massa de manobra de uma plutocracia de viés colonial e passou a propor, em nome da maioria, outra idéia do país. Todos esses episódios reorientadores caminharam na mesma direção: mudar as estruturas que, no Brasil, tornam as pessoas dependentes e, por serem dependentes, pequenas.
Hoje revolução de atitudes magnifica esse papel da classe média. Grande parte dos trabalhadores aspira à condição, de relativa independência e prosperidade, que identificamos, historicamente, com a pequena burguesia. Vida livre de humilhação, em que a auto-ajuda produza resultados fecundos, é o que essa gente mais quer. Nela, a classe média encontraria o aliado que lhe faltou.
A capacidade para efetivar essa aliança em prol de uma transformação do país está, entretanto, comprometida pelo terror econômico e espiritual a que a classe média, tradicional ou emergente, está submetida. Presa à mensalidade da escola particular e ao plano privado de saúde, cada vez mais carente, graças à desestruturação das carreiras públicas e das empresas públicas, de oportunidades de ascensão meritocrática, e informada pelos ideólogos da época de que o único projeto realista é a humanização do inevitável por meio da justaposição de políticas econômicas de rendição com políticas sociais compensatórias, a classe média não tem para onde ir. Esse é o primeiro elemento na tragédia do povo brasileiro.
A tarefa sempre foi a mesma: desenvolver práticas e instituições que enfrentassem, em favor dos objetivos de crescimento, justiça e democracia, as realidades soturnas de uma sociedade tão desigual quanto a nossa. Não seria possível copiando o que países mais ricos e livres já haviam feito. Só seria factível inovando na maneira de organizar a economia e o Estado. Ao contrário do que supunha o mimetismo encabulado que contaminou os líderes da classe média, inovar nas instituições não seria refugiar-se nas ilusões de um nativismo romântico. Seria tomar assento entre as grandes nações ocidentais usando o mesmo método que elas usaram. Não perceber que o que mais precisamos imitar no exemplo histórico delas é o espírito de rebeldia representa o segundo componente na tragédia do povo brasileiro.
Em que veia de inspiração podemos deitar para nos reconstruir? Nada mais original no Brasil do que a anarquia, devoradora de dogmas, que vibra em nossa cultura popular. De mil maneiras diferentes, exprime a esperança de reconciliar o ideal pagão da grandeza com o ideal cristão do amor. A voz predominante em nossa alta cultura, porém, foi sempre a de um ceticismo desiludido e alexandrino: mais para Tchekov do que para Tolstói - a senilidade arvorada em sabedoria. Daí a dificuldade em traduzir em idéias e em palavras o que há de mais vital no Brasil. Esse é o terceiro aspecto da tragédia do povo brasileiro.
Compreender a tragédia do povo brasileiro é o começo do esforço de superá-la. O resto é energia para consumar o casamento da imaginação com a política e paciência para circundar as muralhas e soar o clarim sete vezes.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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