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São Paulo, terça-feira, 20 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O cinema e o viaduto

RIO DE JANEIRO - Faz tempo, participei de um debate no antigo teatro Casa Grande, que era considerado o templo, o Olimpo da conscientização cívica, cujos valores eram proclamados a cada noite.
Quem frequentasse o Casa Grande ficava admirado de, após cada debate, nada acontecer de positivo no mundo e na pátria. A guerra do Vietnã continuava, o regime autoritário aqui no Brasil se tornava mais forte, o nome dos torturados corria de boca em boca e ninguém tomava providências, apenas se debatia, citava-se Weber, Benjamim, Lacan e Marcuse e todos acreditavam estar salvando a pátria e redimindo o homem.
Na noite em que lá estive, um cineasta daquele tempo provou com relatórios oficiais que o governo gastava mais com viadutos do que com o cinema. Um viaduto vagabundo, encurtando alguns metros de pista, custava mais do que a produção de cinco obras-primas nativas.
Fiquei pasmo. Nunca havia pensado nisso. Não que duvidasse dos custos, cuja exposição me pareceu honesta e bem documentada. Então era isso: o dinheiro gasto com um viaduto, um reles melhoramento urbano, impedia as massas de se ilustrarem, de se conscientizarem, de tomarem conhecimento dos verdadeiros desafios pátrios e universais.
Por acaso, naquela mesma ocasião, desabou parte do elevado da avenida Paulo de Frontin, houve mortos e feridos. Meditei seriamente sobre as prioridades do Estado como um todo. Consertar o elevado (que no fundo era um viaduto mais longo do que outros) ou incrementar a cultura, mais especificamente, patrocinar filmes que formassem uma verdadeira nação de homens cultos e solidários?
Até hoje, confesso, não sei a resposta. Mas fico sabendo pelas folhas que o debate continua. A função do Estado é construir viadutos insípidos, que deformam a paisagem urbana e volta e meia desabam fazendo vítimas? Ou patrocinar os altos valores da mente humana, alimentando culturalmente o povo faminto de saber e beleza?


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