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São Paulo, terça-feira, 20 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Das origens ao governo

TIÃO VIANA

  "Não há desregramento maior do espírito do que pensar que o que se deseja é o que é."
Jacques Bénigne Bossuet

Noberto Bobbio , o grande pensador italiano, lembra-nos de que a idéia de "liberdade" sempre esteve mais identificada com as forças políticas ditas de "direita", enquanto a palavra de ordem "igualdade" ficou mais vinculada ao ideário da chamada "esquerda".
O PT, um partido político de esquerda, nasceu, todavia, sob a confluência dos signos da liberdade e da igualdade. Não podemos afirmar que isso tenha sido uma novidade na prática política dos esquerdistas. Devemos recordar, por exemplo, que já em 1918 a militante socialista polonesa Rosa Luxemburgo criticava os descaminhos autoritários da Revolução Bolchevique. Dizia ela: "Liberdade apenas para os apoiadores do governo, apenas para os membros de um partido, por mais numerosos que possam ser, não é liberdade. Liberdade é sempre e exclusivamente liberdade para aquele que pensa diferentemente".
A novidade do PT residiu em articular essas consignas -liberdade e igualdade- com um expressivo movimento social, capaz de viabilizar a realização de seu programa, sob as regras do regime representativo, baseado no pluripartidarismo, no âmbito do Estado democrático de Direito. Porém, se o PT não tivesse sido capaz de vivenciar em suas instâncias essa interação, não teria chegado aonde chegou. Diz, com acerto, o cientista político Umberto Cerroni que um partido, em suas práticas internas, é o embrião da sociedade que pretende fazer prevalecer.
A eleição de Lula para a Presidência da República é expressão dessas origens, de sua rica cultura partidária e do caminho escolhido para a conquista dos meios necessários à implementação de sua plataforma política. Se, no exercício do governo, o PT desconsiderasse esses elementos, estaria fadado ao fracasso, porque a sua fonte de legitimação secaria. Em que pese um certo apelo radical, é preciso reafirmar, porém, que o PT nunca se propôs a fazer uma revolução. A trajetória para a consecução de seus objetivos é e será a de reformas, nos marcos de nossa Constituição, mesmo porque a mera vontade política de reformar o país, para ampliar a liberdade e reduzir as desigualdades, é, em si, revolucionária, dada a nossa larga tradição de exclusão política e social.


Em que pese um certo apelo radical, é preciso reafirmar, porém, que o PT nunca se propôs a fazer uma revolução


Essa opção é fruto de nossa reflexão sobre a própria história. Ser governo é deter apenas uma parcela de poder. Em razão disso, os objetivos estratégicos podem, por vezes, demandar abordagens flexíveis. Mesmo aqueles que levaram adiante processos revolucionários perceberiam seus limites. Lênin viu-se obrigado a convocar czaristas que derrotara para organizar o Exército Vermelho e o Banco Central. Trotsky reconheceria que a indústria socializada "tinha necessidade dos métodos do cálculo monetário elaborados pelo capitalismo" e que "o jogo da oferta e da procura é e será, por muito tempo ainda, a base material indispensável e o corretivo salvador".
Para além das referências aos vetores econômico e ideológico do poder, conforme nos ensina o mesmo Bobbio, é preciso considerar que, no sistema de freios e contrapesos próprio do presidencialismo e da forma federativa de Estado, o poder é compartilhado entre Executivo, Legislativo e Judiciário em distintas esferas político-administrativas. Nessas circunstâncias, o sucesso de um programa reformista depende sobremaneira da coesão daqueles que têm a responsabilidade e a autoridade para torná-lo hegemônico, obtendo consenso ou consentimento daqueles que também podem interferir nos destinos de uma comunidade política.
Isso não significa anular as diferenças. Ao contrário. Habermas nos sugere que o engate do direito e da democracia pressupõe "salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base de uma comunhão de convicções". Uma dessas convicções é a de que a democracia não é simplesmente o governo da maioria, mas aquele que, fazendo valer a vontade da maioria, permite à minoria convolar-se em maioria, por meios pacíficos. Isso requer nitidez na identidade dos blocos que disputam, democraticamente, o mando de campo. Para que isso ocorra é preciso que os partidos sejam fortes e que a fidelidade partidária seja vista com naturalidade. Não podemos nos esquecer de que a união entre social-democratas e democratas cristãos, para a formação da Grande Coalizão na Alemanha, entre 1966 e 1969, esmaeceu a oposição institucional e formou o caldo de cultura em que floresceu o terrorismo inconsequente da esquerda antiparlamentar.
É a convicção de que o PT permanece vivo como espaço democrático da palavra igualitária e libertária, único meio legítimo, não-violento, capaz de gerar a força integradora e vinculante de sua militância, que nos permite afirmar a certeza de bem governar, nos próximos quatro anos, sem desafiar o Estado democrático de Direito, sem descartar nossos sonhos e, o mais importante, sem frustrar a esperança que a maioria do povo depositou na maior liderança da América Latina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Tião Viana, 42, médico, senador da República pelo Estado do Acre, é líder do PT e do bloco parlamentar de apoio ao governo no Senado.


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