São Paulo, sábado, 20 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Há medidas de curto prazo capazes de minorar significativamente a violência?

NÃO

Profunda e antiga acumulação de violência

MICHEL MISSE

Os acontecimentos desta semana não vêm de hoje. Não são também unicamente resultantes da capacidade de articulação de uma organização de presidiários. Mais importante que a ordem dada pelos líderes criminosos é compreender a ampla adesão dos liderados, em sua maioria desorganizados. Uma adesão de dar inveja a partidos políticos revolucionários de outras épocas. Importante também é tentar compreender o profundo ódio disseminado contra policiais e outros agentes do Estado -inédito, nessa proporção, em outros países.
Como decisivo, também, é buscar compreender -se é que é possível- a montante de crueldade, de indiferença pelo outro, de insolente confusão entre a pessoa e o cargo que se ocupa, que parece percorrer os dois principais pólos desse conflito, postos no final das contas como contendores de uma guerra privada. É evidente que o Estado democrático de Direito é atingido, mas menos intencionalmente do que se pensa: sofremos de um efeito perverso, de ações desencadeadas por motivos que não contemplam a democracia, mas, pelo contrário, o autoritarismo.
Foram precisos muitos anos, décadas de uma acumulação de fatores sociais, econômicos, institucionais e políticos para que se chegasse ao ponto em que chegamos de insegurança pública, crise de referências de controle social e desespero disseminado no cotidiano de milhões de brasileiros em centros urbanos de grande ou de médio porte.
Mas, diferentemente da violência no campo, que permanece tradicional, oligárquica, porém ainda voltada para conflitos que mobilizam interesses coletivos e ideologias revolucionárias, a violência nas cidades emerge de uma sinistra articulação entre mercados ilícitos que transacionam mercadorias orgiásticas (corpos, luxúria, drogas e armas) e mercadorias políticas (extorsão e corrupção praticadas com base no excesso de poder de agentes do Estado, interpretadas na gíria como "esculacho"). A oferta de proteção a criminosos, uma mercadoria política transacionada por agentes do Estado, é a contraparte da violência arbitrária que cria a demanda dessa mesma mercadoria. Essa articulação entre dois tipos de mercados ilícitos reproduz também a criminalidade convencional, mais desorganizada, baseada no furto, no roubo e no assassinato como acerto de contas ou vingança. Essa delinqüência segmentada fornece apoio e homens às elites do crime organizado, que dela se utiliza.
Começou no Rio de Janeiro dos anos 50 a primeira grande ruptura com o princípio da proporcionalidade da pena, tão caro ao direito moderno. Furtos não recebem penas de roubos, tráfico não recebe penas de homicídios. Quando uma pena ilegal comum -a morte- passou a ser praticada indiferentemente, a criminalidade mudou. Evidentemente, a ruptura não se deu nas instituições do Estado, e sim na informalidade dos grupos de extermínio e dos esquadrões da morte.
Com o apoio de parte da população, que via na execução sumária de ladrões e assaltantes a medida adequada da pena, introduziu-se definitivamente o receio da rendição -e a reação armada- entre os jovens que derivavam para os crimes contra o patrimônio. A ameaça concreta de ser morto por ser ladrão contribuiu para a mudança no padrão de criminalidade, mudança que também se transferiu para o tráfico de drogas. O aumento das taxas de homicídio, desde então, que passou da faixa de 5 por 100 mil na década de 40 para 10 por 100 mil na década seguinte, 20 por 100 mil nos anos 60, até chegar aos 50, 60, 70 por 100 mil nas décadas seguintes no Rio de Janeiro, já indicavam que uma parte significativa dos mortos era produzida em conflitos que envolviam os dois mercados ilícitos, os grupos de extermínio de ladrões e assaltantes e o confronto de criminosos com a polícia.
Infelizmente, não tenho ilusões quanto à possibilidade de se deter essa acumulação social da violência no curto prazo e mesmo no prazo de uma geração. Profundas reformas nas instituições da administração da Justiça, a retomada do crescimento econômico de um modo sustentável, a continuidade e o aprofundamento das políticas de resgate da dívida social acumulada em décadas, a oferta de alternativas criativas de horizontes de trabalho e renda para os jovens excluídos, capaz de incorporar seus novos estilos de vida; a universalização do acesso à educação, à garantia de vida saudável e aos direitos civis aos filhos das classes menos favorecidas -são tantos os desafios que precisaremos enfrentar nas próximas décadas para reverter a acumulação social da violência que não me cabe acenar senão com um futuro próximo ainda sombrio, enquanto durarem os fatores que produzem o nosso atual mal-estar.


Michel Misse, professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é o autor de "Crime e Violência no Brasil Contemporâneo" (Lúmen Júris, 2006).


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