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TENDÊNCIAS/DEBATES
Há medidas de curto prazo capazes de
minorar significativamente a violência?
NÃO
Profunda e antiga acumulação de violência
MICHEL MISSE
Os acontecimentos desta semana não vêm de hoje. Não são também unicamente resultantes da capacidade de articulação de uma organização
de presidiários. Mais importante que a
ordem dada pelos líderes criminosos é
compreender a ampla adesão dos liderados, em sua maioria desorganizados.
Uma adesão de dar inveja a partidos políticos revolucionários de outras épocas.
Importante também é tentar compreender o profundo ódio disseminado
contra policiais e outros agentes do Estado -inédito, nessa proporção, em
outros países.
Como decisivo, também, é buscar
compreender -se é que é possível- a
montante de crueldade, de indiferença
pelo outro, de insolente confusão entre
a pessoa e o cargo que se ocupa, que parece percorrer os dois principais pólos
desse conflito, postos no final das contas como contendores de uma guerra
privada. É evidente que o Estado democrático de Direito é atingido, mas menos intencionalmente do que se pensa:
sofremos de um efeito perverso, de
ações desencadeadas por motivos que
não contemplam a democracia, mas,
pelo contrário, o autoritarismo.
Foram precisos muitos anos, décadas
de uma acumulação de fatores sociais,
econômicos, institucionais e políticos
para que se chegasse ao ponto em que
chegamos de insegurança pública, crise
de referências de controle social e desespero disseminado no cotidiano de milhões de brasileiros em centros urbanos
de grande ou de médio porte.
Mas, diferentemente da violência no
campo, que permanece tradicional, oligárquica, porém ainda voltada para
conflitos que mobilizam interesses coletivos e ideologias revolucionárias, a violência nas cidades emerge de uma sinistra articulação entre mercados ilícitos
que transacionam mercadorias orgiásticas (corpos, luxúria, drogas e armas) e
mercadorias políticas (extorsão e corrupção praticadas com base no excesso
de poder de agentes do Estado, interpretadas na gíria como "esculacho"). A
oferta de proteção a criminosos, uma
mercadoria política transacionada por
agentes do Estado, é a contraparte da
violência arbitrária que cria a demanda
dessa mesma mercadoria. Essa articulação entre dois tipos de mercados ilícitos
reproduz também a criminalidade convencional, mais desorganizada, baseada
no furto, no roubo e no assassinato como acerto de contas ou vingança. Essa
delinqüência segmentada fornece apoio
e homens às elites do crime organizado,
que dela se utiliza.
Começou no Rio de Janeiro dos anos
50 a primeira grande ruptura com o
princípio da proporcionalidade da pena, tão caro ao direito moderno. Furtos
não recebem penas de roubos, tráfico
não recebe penas de homicídios. Quando uma pena ilegal comum -a morte- passou a ser praticada indiferentemente, a criminalidade mudou. Evidentemente, a ruptura não se deu nas instituições do Estado, e sim na informalidade dos grupos de extermínio e dos esquadrões da morte.
Com o apoio de parte da população,
que via na execução sumária de ladrões
e assaltantes a medida adequada da pena, introduziu-se definitivamente o receio da rendição -e a reação armada-
entre os jovens que derivavam para os
crimes contra o patrimônio. A ameaça
concreta de ser morto por ser ladrão
contribuiu para a mudança no padrão
de criminalidade, mudança que também se transferiu para o tráfico de drogas. O aumento das taxas de homicídio,
desde então, que passou da faixa de 5
por 100 mil na década de 40 para 10 por
100 mil na década seguinte, 20 por 100
mil nos anos 60, até chegar aos 50, 60, 70
por 100 mil nas décadas seguintes no
Rio de Janeiro, já indicavam que uma
parte significativa dos mortos era produzida em conflitos que envolviam os
dois mercados ilícitos, os grupos de extermínio de ladrões e assaltantes e o
confronto de criminosos com a polícia.
Infelizmente, não tenho ilusões quanto à possibilidade de se deter essa acumulação social da violência no curto
prazo e mesmo no prazo de uma geração. Profundas reformas nas instituições da administração da Justiça, a retomada do crescimento econômico de
um modo sustentável, a continuidade e
o aprofundamento das políticas de resgate da dívida social acumulada em décadas, a oferta de alternativas criativas
de horizontes de trabalho e renda para
os jovens excluídos, capaz de incorporar seus novos estilos de vida; a universalização do acesso à educação, à garantia de vida saudável e aos direitos civis
aos filhos das classes menos favorecidas
-são tantos os desafios que precisaremos enfrentar nas próximas décadas
para reverter a acumulação social da
violência que não me cabe acenar senão
com um futuro próximo ainda sombrio, enquanto durarem os fatores que
produzem o nosso atual mal-estar.
Michel Misse, professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é o autor de
"Crime e Violência no Brasil Contemporâneo"
(Lúmen Júris, 2006).
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