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São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 2003

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JOSÉ SARNEY

A rabeca da Previdência

Estamos iniciando uma nova fase. "A festa acabou, os músicos foram embora" (Drummond). Uns poderão lembrar o ditado popular que diz que "chegou a hora de a onça beber água". Outros, que é "a hora e a vez de Augusto Matraga" (Guimarães Rosa), numa simbiose entre o saber erudito e o popular.
É que, como todo governo, o atual entra no mar de sua realidade. O governo democrático é sempre fruto de uma conquista e de um desejo. Na candidatura, para que se vença uma eleição, qualquer que seja o seu nível, há sempre um convite para descascar abacaxis e para realizar tarefas mais leves, como fazer a mesma coisa com bananas.
Já ouvi dizer que governar o Brasil é uma coisa fácil. Eu sempre achei muito difícil, e sabe Deus as pancadas e os solavancos que enfrentei. Mas, em matéria de gosto, não há discussão. Cada um tem o seu. Governar o seu país é uma boa escolha do destino. Uma coisa é constatar dificuldades, outra é chorar por ela ou ficar atirando pedras. Não chorei nem atirei pedras. Aguentei firme.
A sociedade democrática é de conflitos. Os grupos de pressão, o choque de interesses e o corporativismo são todos legítimos e fazem parte do jogo. A novidade é que estamos num tempo de baixo teor ideológico e de alta busca de resultados. A maior característica dessa nossa passagem de milênio, impulsionada pela comunicação global e pelo fim das ideologias, é uma óbvia práxis de que a esquerda e a direita não são irreconciliáveis. Elas podem conviver, não é uma guerra de extermínio. Governar passou a ser, no terreno dos modelos clássicos, convergir para o centro. É o exemplo da Europa, onde as sociedades dos países do antigo Leste Europeu comunista dançam essa música entre experiências e beijos.
Na nossa América Latina, sempre convivemos com uma grande promiscuidade entre governo, empresas e órgãos públicos. O desmonte do Estado, com as privatizações, foi tão promíscuo quanto a montagem e a existência das empresas estatais. Tudo o que se dizia dessas foi pouco diante da bacia das almas das vendas. Nosso modelo não foi exemplar, como as novelas de Cervantes.
O global e em marcha desmonte do estado de bem-estar social criou tensões adicionais, atingindo as populações excluídas dos mais pobres. O medo de perder o emprego passou a ser mais sério do que o desemprego. Cabe, portanto, restabelecer a confiança, construindo uma rede de proteção que evite a cruel matança dos valores sociais promovida pelo neoliberalismo.
Daí a desconfiança com a panela de pressão que vemos esquentar com a reforma da Previdência. Nada pior do que a insegurança. Insegurança de não ter acesso à educação, à saúde e à oportunidade de futuro.
Li no "Le Figaro", revoltado, um editorial que analisava o clima de protesto geral que vive a França com a reforma previdenciária. E perguntei-me: "Somos ainda um Estado de Direito?".
Tenhamos paciência e cabeça fria e exercitemos o instrumento do diálogo. É ele o caminho para a solução.
Repito a sabedoria nordestina: "Com grito não se afina rabeca".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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