São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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Indignidade nacional



O empresariado brasileiro decidiu investir estupidamente contra seu principal aliado: o Estado
FÁBIO KONDER COMPARATO

Vamos reconhecer o óbvio: o que vivemos hoje não é uma crise de governo, mas de regime político. A questão crucial já não é saber quando e como substituir o atual presidente da República, que permanece na função por força de inércia, mas enfrentar as consequências socioeconômicas de uma mudança de classes dominantes.
Em menos de uma década, o conjunto do empresariado brasileiro, compreendendo os setores industrial, financeiro e de serviços, foi suplantado por grupos estrangeiros. Os dados sobre essa súbita desnacionalização, inquestionáveis, vêm sendo divulgados copiosamente nas páginas deste jornal.
O produto industrial do país decresceu pela primeira vez desde 1930. Nosso parque industrial, que chegou a ser o maior da América Latina e o oitavo no mundo, produz hoje 5,3% menos do que produzia há dez anos. As empresas estrangeiras já respondem por cerca de 40% das exportações e 44% das vendas no mercado nacional. No setor financeiro, em apenas dois anos (de 95 a 97), o controle estrangeiro sobre os ativos totais dos bancos passou de 21% a 30%, ampliando-se mais ainda em 98. Ora, esse resultado foi obtido, em grande parte, graças ao financiamento de aquisição de bancos, por meio do Proer.
Na comunicação de massa, as dificuldades financeiras das empresas jornalísticas e de TV são notórias. Esta Folha, em 21/3, ressaltou que dois dos principais grupos empresariais do setor, Globo e Abril, acham-se tecnicamente insolventes. O endividamento do primeiro, pelo balanço de junho de 1998, era de 269% sobre o patrimônio líquido, e o da Abril, em setembro de 1998, de 374%. No exercício de 1998, a Globopar, holding do grupo Globo, sofreu prejuízo de US$ 293 milhões. Não é difícil entender, nessas condições, por que tramita no Congresso um projeto de emenda constitucional para quebrar o dispositivo que, tradicionalmente, reserva a brasileiros a totalidade da participação votante em sociedades de imprensa, rádio e televisão.
Como foi possível realizar, em tão pouco tempo, essa formidável desnacionalização? A resposta é simples: pela destruição do Estado nacional. Intoxicado pela ideologia neoliberal, o empresariado brasileiro decidiu investir estupidamente contra seu principal aliado: o Estado. Foi este que engendrou a classe industrial do nada, a partir de 1930, e transformou-a em grupo hegemônico na economia brasileira. Foi o Estado que protegeu, durante décadas, o setor bancário e de seguros contra a invasão estrangeira. Derrubado o seu grande protetor, os nossos empresários viram-se subitamente indefesos diante dos grupos multinacionais, todos eles defendidos, senão controlados, por Estados estrangeiros.
A operação de debilitamento do Estado nacional, iniciada timidamente por Collor em 1990 e acelerada sob Fernando Henrique, obedeceu a um método eficientíssimo: aplicação combinada de políticas de privatização, endividamento estatal, sobrevalorização cambial, facilitação de importações e desregulamentação da atividade empresarial.
A política de privatizações em particular, sobre a qual Aloysio Biondi acaba de lançar contundente livro ("O Brasil Privatizado"), representou um verdadeiro assalto ao patrimônio público e uma agressão à classe trabalhadora. A maior empresa mineira do mundo (a única que detinha o mapa geológico completo do Brasil) foi vendida na bacia das almas por um preço correspondente a menos de 1% da dívida pública. Pouco antes de privatizar a CSN, a Açominas e as empresas do complexo Telebrás, o governo federal investiu nelas, respectivamente, R$ 1,9 bilhão, R$ 4,7 bilhões e R$ 21 bilhões.
Aproveitando-se da desregulamentação, os grupos de fora que adquiriram nossas empresas puderam iniciar imediatamente o bombeamento maciço de lucros e dividendos para as suas matrizes. Em 1997, as remessas de lucros para o exterior já atingiam US$ 7,5 bilhões, dez vezes mais do que em 1992. Elas tendem a crescer aceleradamente.
Como se não bastasse, o BNDES decidiu financiar a maior parte das privatizações com recursos oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Graças a esse financiamento (com desvio de finalidade e fraude à lei), a primeira medida administrativa dos novos controladores consistiu na dispensa coletiva de empregados. Foram extintas, só nas empresas telefônicas privatizadas, 18 mil vagas em pouco mais de seis meses.
Diante desse quadro espantoso, que reflete a mais vasta empreitada de desnacionalização do país na história, o que nos cabe perguntar, como vítimas, é se algum dia ainda teremos oportunidade de julgar e punir os responsáveis.
Logo após a libertação da França, ao término da Segunda Guerra, o governo de De Gaulle percebeu que a nação jamais se sentiria moralmente reabilitada se os autores de atos de colaboração com os nazistas não fossem exemplarmente punidos. Decidiu-se que todos os traidores, sem prejuízo da aplicação das penas previstas na lei, deveriam ser castigados com o labéu altamente simbólico da indignidade nacional.
O castigo foi justíssimo. Dante tinha razão em imaginar que os traidores da pátria estavam mergulhados no nono e mais profundo círculo do inferno. No dia em que recuperamos a nossa soberania e restabelecermos o povo na posse de seus direitos fundamentais, não bastará levar os traidores à barra dos tribunais. Será indispensável marcá-los indelevelmente com o estigma da indignidade nacional. Para que o Brasil não se envergonhe de si mesmo.


Fábio Konder Comparato, 62, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França), é professor titular da Faculdade de Direito da USP, fundador e diretor da Escola de Governo e autor do livro "Para Viver a Democracia".




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