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MARCOS NOBRE
Medos públicos
A última comemoração do
14 de Julho na França foi marcada por desastres políticos
vários. Forças armadas de ex-colônias desfilaram como forma de reparação e de reconhecimento, mas algumas delas
devem reparação urgente em
seus próprios países. Em uma
disputa judicial entre herdeiros, surgiram fortes indícios
de financiamento ilegal do
partido do governo.
São questões graves, que
acabaram fazendo com que
passasse como acontecimento
de menor importância a proibição de uso "de vestimenta
destinada a dissimular o rosto". É uma proibição dirigida
diretamente contra mulheres
que usam véus islâmicos que
cobrem todo o corpo.
A Revolução Francesa impôs uma única língua, o sistema métrico e um conjunto de
valores a serem observados
por qualquer pessoa que quiser ser cidadã. Foi o maior
avanço histórico do milênio.
Incomparavelmente mais progressista do que o modelo europeu seu rival, o liberalismo
inglês.
No Brasil não faltam defensores do republicanismo francês. Aliás, estabeleceu-se por
aqui que "republicano" é sinônimo de "boa democracia".
Algo bom por definição.
O problema é que, hoje, o
modelo impede avanços democráticos ao invés de fomentá-los. Defende ser preciso restringir previamente a liberdade dos cidadãos para alcançar
igualdade no espaço público.
Mas, sob os "valores cívicos" impostos para alcançar a
liberdade da cidadania, camufla-se a imposição de um padrão implícito de como se deve levar a vida. E toda tentativa de questionar substantivamente esse padrão social é
empurrada para o terreno preferido (e regressivo) do liberalismo: o espaço privado.
Ora, se o objetivo é proteger
as mulheres de um costume
considerado atentatório aos
direitos da pessoa humana,
proibir o uso do véu em público é caminho seguro para que
essa prática continue.
Porque o resultado é que essas mulheres vão deixar de
frequentar os espaços públicos. E, recolhidas ao âmbito
doméstico, vão se tornar invisíveis. Não serão mais solicitadas a explicar por que, afinal,
usam o véu. Sua atitude não
será mais questionada. E invisibilidade e falta de questionamento são os abrigos naturais
para tradicionalismos de todos os matizes.
Sob o neoconservadorismo
de Sarkozy, a defesa da República tornou-se um fim em si
mesmo. Tomou o lugar da defesa de espaços democráticos
de autonomia para pessoas e
grupos sociais.
São medos públicos de
aprofundar a democracia que
expulsam os problemas para a
invisibilidade dos lugares privados. O preço que cobram é o
maior possível: a indiferença.
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras
nesta coluna.
nobre.a2@uol.com.br
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