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São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um brasileiro a serviço da paz

CELSO AMORIM

Sérgio Vieira de Mello dedicou sua vida à Organização das Nações Unidas e à construção da paz. Rara combinação de intelectual e homem de ação, Sérgio ingressou no Alto Comissariado para Refugiados da ONU com 21 anos, munido de um idealismo que nunca abandonaria. Pouco tempo mais tarde, concluiria seu doutorado em filosofia na Sorbonne. Enfrentou espinhosas missões nos mais turbulentos cenários com a mesma galhardia carioca que permanecerá na lembrança de todos aqueles que tiveram a oportunidade de o conhecer.
Fluente em vários idiomas, mantinha sua desconcertante espontaneidade tanto em contatos com chefes de Estado quanto no atendimento às vítimas dos conflitos armados, às quais procurava levar socorro e esperança.
Antes de ser indicado por Kofi Annan para o cargo de subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, em 1998, já adquirira uma sólida reputação por seu trabalho de campo em situações de alto risco no Sudão, no Líbano, no Camboja e na Bósnia, entre outros. Sua habilidade política assegurou-lhe o apoio dos integrantes do Conselho de Segurança quando o secretário-geral decidiu indicá-lo como seu representante para o Kosovo, após os bombardeios da Otan na ex-Iugoslávia.



Estou certo de que o exemplo de Sérgio Vieira de Mello inspirará sucessivas gerações de brasileiros e brasileiras

Tarefa de ainda maior complexidade foi-lhe confiada quando Annan o nomeou chefe da Administração Interina de Timor Leste, no período crítico que antecedeu a independência timorense. Em reconhecimento aos inestimáveis serviços por ele prestados à causa humanitária e às Nações Unidas, Sérgio Vieira de Mello foi aclamado pela Assembléia Geral, em 2002, como alto comissário para Direitos Humanos. Nos meses em que exerceu o cargo, dedicou especial atenção à consolidação do Estado de Direito em países recém-saídos de conflitos armados.
Em maio último, quando o Conselho de Segurança buscava cicatrizar as desavenças que o haviam imobilizado no tratamento da crise iraquiana, seu nome despontou como o candidato natural para assumir o que seria sua última e possivelmente mais difícil missão, na qualidade de representante do secretário-geral em Bagdá. Sua morte constitui um sério revés para o processo de reconstrução institucional do Iraque.
Em suas mais recentes declarações, insistia na importância da rápida devolução do poder político aos iraquianos, com vistas ao pleno restabelecimento da soberania do país. O hediondo ato terrorista perpetrado ontem contra o escritório da ONU em Bagdá desfecha um golpe brutal contra aqueles que mais podem fazer pela paz na região, interrompendo um esforço incipiente, mas de resultados encorajadores, de reconciliação nacional.
Tive a honra de trabalhar em parceria com Sérgio Vieira de Mello durante o período em que fui representante permanente do Brasil junto à ONU em Nova York. Ironicamente, o tema que nos aproximou na época foi a questão iraquiana. Em janeiro de 1999, quando assumi a presidência do Conselho de Segurança, acabávamos de vivenciar a interrupção das atividades dos inspetores da ONU no Iraque, e a tarefa principal que se impunha ao órgão era restabelecer um consenso mínimo entre seus membros, para garantir o cumprimento por Bagdá de suas obrigações na área de desarmamento. Foram constituídas três comissões sob minha coordenação, com o mandato de elaborar não somente recomendações para o desmantelamento da capacidade iraquiana de destruição em massa, como também diretrizes para a redução do sofrimento da população civil e para a prestação de contas quanto ao destino dos prisioneiros de guerra.
Sérgio desempenhou um papel central na elaboração do relatório sobre a situação humanitária, revelando a um só tempo sua sensibilidade com relação às carências dos desvalidos e sua vocação para a identificação dos consensos possíveis. São traços que marcaram toda a sua brilhante carreira como funcionário da ONU e incansável defensor do multilateralismo.
As inúmeras manifestações de consternação e pesar pelo desaparecimento precoce de Sérgio Vieira de Mello, provenientes dos mais diversos quadrantes, representam um tributo a um artesão da paz que, em suas múltiplas e árduas missões pelo mundo, soube honrar a confiança nele depositada pela comunidade internacional. Estou certo de que seu exemplo inspirará sucessivas gerações de brasileiros e brasileiras que desejam contribuir para o aperfeiçoamento da convivência entre os povos e as nações. Ao decretar luto oficial e agraciá-lo postumamente com a Ordem Nacional do Mérito, o presidente da República inscreve o nome de Sérgio Vieira de Mello no panteão de heróis que honraram o nome do Brasil.

Celso Luiz Nunes Amorim, 61, é o ministro das Relações Exteriores. Ocupou a mesma pasta no governo Itamar Franco.


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