São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 2002

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JOSÉ SARNEY

Prisioneiros do passado

A política brasileira sempre foi marcada pela existência de um campo neutro, de um terreno comum, no qual o interesse público e a sobrevivência pacífica do país sempre encontraram margem para soluções de compromisso. Esse espaço de convergência e de conciliação não é novo nem é expressão de oportunismo, mas, sim, uma face do caráter do país, que comporta o tal "brasileiro cordial" identificado por Sérgio Buarque de Holanda, ele mesmo expressão e síntese desse jeito de viver.
A maneira como d. João 6º fez girar o eixo de comando do Império português para o Brasil e o modo como, depois, deixou plantado aqui o pé firme de d. Pedro são sinais fortes de transição pacífica para uma independência, processo sempre traumático na história das nações. O Império, igualmente, transitou assim para a República. A Nova República, em 1985, para a democracia, idem. Tudo isso revela o traço marcante da tolerância que mora na alma nacional.
Nossos recursos humanos na política sempre foram limitados, e nossas lutas nunca foram marcadas pelo extermínio do adversário. Nunca praticamos a política e a lei dos fundamentalismos religiosos -uns condenados à salvação e outros, à morte. Daí por que a história do Brasil é marcada por esses momentos de entendimento e de conciliação. Tancredo Neves repetia sempre que a personalidade política por quem tinha a maior admiração era Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês do Paraná, justamente o homem da conciliação.
A abolição e a República foram construídas com esse caráter brasileiro. Quem faz a lei da abolição? Os filhos dos escravocratas, a princesa Isabel e a campanha abolicionista comandada por Joaquim Serra -a sombra de Nabuco-, por José do Patrocínio e por outros. A República não foge à regra. Quem a comanda e proclama é o marechal Deodoro, monarquista. Uma vez instalada, são os mesmos quadros que a ela se juntam e evitam as lutas fratricidas.
Eu mesmo testemunhei três desses episódios marcados por esse "jeito brasileiro". Em 1955, quando houve o golpe militar contra Café Filho, houve contragolpe contra o movimento que desejava impedir a posse de Juscelino. Outro foi a renúncia de Jânio. E, finalmente, a revolução de 64. Em todos, as soluções evitaram confrontações. No princípio, era apreensão. Depois, começavam os grupos a se entender e, por fim, surgia a solução. No primeiro, o ministro Lott, do governo, aderiu a outro grupo e assegurou a posse de Juscelino. No segundo, saiu-se para a fórmula parlamentarista e, finalmente, em 64, todos se reuniram, desde Ulysses, Capanema e Amaral Peixoto até Juscelino, Krieger e Lacerda, para encontrar a solução da escolha do presidente Castello.
Na história do Brasil, todos os presidentes conciliadores, com as suas idéias políticas abertas ao diálogo, sem ódio ou revanchismos, asseguraram períodos de prosperidade e de paz.
O caráter nacional é esse. Não cultivamos ódios nem costumes de vingança e de perseguição. Os que tiveram esses sentimentos foram contra o sentimento nacional e pagaram um preço muito alto.
Se perguntarmos de onde vem esse comportamento, eu responderei que é fruto da formação brasileira, com esse povo mestiço, feito de várias raças, com o gosto da convivência pacifica entre todos.
Assim, qualquer que seja o presidente, ninguém espere que o país vire de ponta-cabeça. Duas coisas não podem ser violentadas: a história e a geografia. A história, que é a alma de um país, e a geografia, que é o seu corpo.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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