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TENDÊNCIAS/DEBATES
O resultado da reunião da OMC em Cancún foi uma vitória para o Brasil?
SIM
Comércio e soberania
MARCO AURÉLIO GARCIA
O comércio internacional tem se
revelado um dos aspectos mais críticos da desordem econômica imperante no mundo nos últimos 20 anos.
Os países ricos, sem exceção, defendem retoricamente o livre comércio, ao
mesmo tempo em que praticam o mais
deslavado protecionismo. A produção e
as exportações agrícolas do que antes se
chamou Primeiro Mundo recebem subsídios próximos a US$ 1 bilhão diários.
É evidente que essas práticas produzem
fortes tensões, na medida em que agravam as assimetrias comerciais internacionais.
A OMC, criação tardia do sistema
Bretton-Woods, tem revelado enormes
dificuldades para estabelecer um ordenamento equilibrado das trocas internacionais. Os conflitos de interesse paralisaram no passado a reunião de Seattle, e os pequenos avanços obtidos no
encontro de Doha criaram para alguns a
ilusão de que em Cancún se chegaria a
resultados positivos. O Brasil tinha, no
entanto, consciência das resistências
dos países ricos, especialmente em relação às questões agrícolas, fundamentais
para que qualquer entendimento pudesse ser logrado.
A partir dessa percepção, buscou somar forças, articulando um conjunto de
países que viria a ser conhecido como
G21, para defender uma posição comum no encontro no México. O G21
tem a particularidade de reunir países
muito distintos. Além do Brasil, nele estão Índia, China, África do Sul, Argentina, Chile e Costa Rica, dentre outros.
Muitos apostavam que os interesses
diferenciados desses países acabariam
por provocar a desagregação do bloco,
com a cooptação de alguns de seus
membros pelos países ricos. Tal não
aconteceu.
Prevaleceu a compreensão política de
que o G21 representava um avanço qualitativo nas negociações internacionais.
Ia-se mais além de uma estratégia de resistência, apresentando-se uma agenda
positiva, diante da qual os países ricos
passaram a enfrentar reais dificuldades.
Esse sentimento de união, contrariando
os eternamente céticos, tem toda a possibilidade de se manter no futuro, dando nascimento a uma nova força nas negociações comerciais internacionais.
A delegação brasileira em Cancún
praticou a diplomacia "ativa e altiva"
que o ministro Celso Amorim havia
anunciado como nova marca da política
externa brasileira, quando foi convidado pelo presidente Lula a assumir o Ministério das Relações Exteriores. Defendeu o interesse nacional, ilustrado pela
presença, ao lado do chanceler, dos ministros da Agricultura, Desenvolvimento, Meio Ambiente e Reforma Agrária,
além de parlamentares, sindicalistas,
empresários e ONGs. Praticou uma política de alianças adequada e imprescindível para alterar a atual correlação de
forças internacionais em proveito de
uma ordem econômica mais justa e
equilibrada. Mostrou aos países ricos
que eles não podem mais persistir em
suas posições protecionistas, sob pena
de produzirem um impasse mundial de
grandes proporções.
Tem sido difícil conviver com a OMC.
Será muito pior viver sem ela. Parece ter
chegado o momento de dar início a um
processo de reconstrução das relações
comerciais internacionais, e o Brasil deu
uma contribuição decisiva nessa direção. É evidente que a grande vitória brasileira em Cancún teria sido a obtenção
de um acordo que contemplasse não só
nossos interesses, como aqueles de todos os países em desenvolvimento. Na
falta dele, o impasse foi melhor do que
nosso esmagamento.
As primeiras reações ao fracasso de
Cancún mostram reflexões sintomáticas. Os países ricos terão de reexaminar
suas posições e mostrar mais flexibilidade no encontro de Genebra, ainda neste
ano, quando se buscará chegar a um
consenso.
Os países que integram o G21 revelaram maturidade. Não buscaram o enfrentamento. Demonstraram firmeza e
deram exemplo de que a união e a formação de propostas sólidas podem ser
instrumentos eficazes para a construção
de um mundo mais justo e equilibrado.
Não faltarão críticas à posição brasileira em nome de um discutível "realismo político". Discutível não porque o
realismo em política não seja necessário, mas pelo fato de muitas vezes essa
expressão acobertar um sentimento de
renúncia, quando não de submissão,
daqueles que se acostumaram a ver o
Brasil como um país pequeno.
Marco Aurélio Garcia, 62, professor licenciado
do Departamento de História da Unicamp, é assessor especial de Política Externa da Presidência da República. Foi secretário de Cultura do
município de São Paulo (gestão Marta Suplicy).
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