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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O resultado da reunião da OMC em Cancún foi uma vitória para o Brasil?

SIM

Comércio e soberania

MARCO AURÉLIO GARCIA

O comércio internacional tem se revelado um dos aspectos mais críticos da desordem econômica imperante no mundo nos últimos 20 anos.
Os países ricos, sem exceção, defendem retoricamente o livre comércio, ao mesmo tempo em que praticam o mais deslavado protecionismo. A produção e as exportações agrícolas do que antes se chamou Primeiro Mundo recebem subsídios próximos a US$ 1 bilhão diários. É evidente que essas práticas produzem fortes tensões, na medida em que agravam as assimetrias comerciais internacionais.
A OMC, criação tardia do sistema Bretton-Woods, tem revelado enormes dificuldades para estabelecer um ordenamento equilibrado das trocas internacionais. Os conflitos de interesse paralisaram no passado a reunião de Seattle, e os pequenos avanços obtidos no encontro de Doha criaram para alguns a ilusão de que em Cancún se chegaria a resultados positivos. O Brasil tinha, no entanto, consciência das resistências dos países ricos, especialmente em relação às questões agrícolas, fundamentais para que qualquer entendimento pudesse ser logrado.
A partir dessa percepção, buscou somar forças, articulando um conjunto de países que viria a ser conhecido como G21, para defender uma posição comum no encontro no México. O G21 tem a particularidade de reunir países muito distintos. Além do Brasil, nele estão Índia, China, África do Sul, Argentina, Chile e Costa Rica, dentre outros.
Muitos apostavam que os interesses diferenciados desses países acabariam por provocar a desagregação do bloco, com a cooptação de alguns de seus membros pelos países ricos. Tal não aconteceu.
Prevaleceu a compreensão política de que o G21 representava um avanço qualitativo nas negociações internacionais. Ia-se mais além de uma estratégia de resistência, apresentando-se uma agenda positiva, diante da qual os países ricos passaram a enfrentar reais dificuldades. Esse sentimento de união, contrariando os eternamente céticos, tem toda a possibilidade de se manter no futuro, dando nascimento a uma nova força nas negociações comerciais internacionais.
A delegação brasileira em Cancún praticou a diplomacia "ativa e altiva" que o ministro Celso Amorim havia anunciado como nova marca da política externa brasileira, quando foi convidado pelo presidente Lula a assumir o Ministério das Relações Exteriores. Defendeu o interesse nacional, ilustrado pela presença, ao lado do chanceler, dos ministros da Agricultura, Desenvolvimento, Meio Ambiente e Reforma Agrária, além de parlamentares, sindicalistas, empresários e ONGs. Praticou uma política de alianças adequada e imprescindível para alterar a atual correlação de forças internacionais em proveito de uma ordem econômica mais justa e equilibrada. Mostrou aos países ricos que eles não podem mais persistir em suas posições protecionistas, sob pena de produzirem um impasse mundial de grandes proporções.
Tem sido difícil conviver com a OMC. Será muito pior viver sem ela. Parece ter chegado o momento de dar início a um processo de reconstrução das relações comerciais internacionais, e o Brasil deu uma contribuição decisiva nessa direção. É evidente que a grande vitória brasileira em Cancún teria sido a obtenção de um acordo que contemplasse não só nossos interesses, como aqueles de todos os países em desenvolvimento. Na falta dele, o impasse foi melhor do que nosso esmagamento.
As primeiras reações ao fracasso de Cancún mostram reflexões sintomáticas. Os países ricos terão de reexaminar suas posições e mostrar mais flexibilidade no encontro de Genebra, ainda neste ano, quando se buscará chegar a um consenso.
Os países que integram o G21 revelaram maturidade. Não buscaram o enfrentamento. Demonstraram firmeza e deram exemplo de que a união e a formação de propostas sólidas podem ser instrumentos eficazes para a construção de um mundo mais justo e equilibrado.
Não faltarão críticas à posição brasileira em nome de um discutível "realismo político". Discutível não porque o realismo em política não seja necessário, mas pelo fato de muitas vezes essa expressão acobertar um sentimento de renúncia, quando não de submissão, daqueles que se acostumaram a ver o Brasil como um país pequeno.


Marco Aurélio Garcia, 62, professor licenciado do Departamento de História da Unicamp, é assessor especial de Política Externa da Presidência da República. Foi secretário de Cultura do município de São Paulo (gestão Marta Suplicy).


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