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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O resultado da reunião da OMC em Cancún foi uma vitória para o Brasil?

NÃO

O "mal menor"

RICARDO SEITENFUS

Todos devem se sentir derrotados quando uma conferência diplomática, cujas decisões só podem ser tomadas por consenso, como é o caso na OMC, não consegue concluir a redação de um texto básico após quatro anos de negociações.
O fracasso de Cancún provocou, porém, a euforia dos "antimundialistas", suposta sociedade civil internacional que deve ser percebida com cautela. Embora desprovidos de mandato e detentores de conceitos peculiares do interesse público, os movimentos que se opõem à globalização têm grande influência nas negociações internacionais.
Em Cancún, seu objetivo foi inviabilizar qualquer resultado da conferência. Barulhentos manifestantes opõem-se aos fundamentos do comércio internacional e propugnam um retorno ao hipotético paraíso perdido que somente a autarquia proporciona. Seriam eles bons conselheiros ou proveitosa companhia para os países em desenvolvimento?
Mais significativa, no entanto, foi a reação das organizações agrícolas européias e norte-americanas. A satisfação mesclou-se ao alívio, pois nenhuma concessão foi feita relativamente aos absurdos privilégios que protegem suas atividades. Como explicar, por exemplo, que a Holanda exporte, em valores, mais do que o dobro das exportações agrícolas brasileiras e quase o triplo das argentinas? Esses dados referem-se às exportações agrícolas mundiais de 2000, conforme publicações oficiais da OMC.
Quanto ao Brasil, a posição do governo está à altura da imensa complexidade das dificuldades que se apresentam. O ministro Celso Amorim rejeita, com razão, qualquer responsabilidade individual a respeito da ausência de resultado da conferência e, sobretudo, enfatiza que a posição brasileira não se sustenta em bases ideológicas, mas na defesa de interesses concretos.
Tal atitude é fundamental para que não haja a tentação de reeditar as crises que sacudiram a Unesco e a OIT nos anos 1970, quando o G77 tentou utilizar a tribuna das organizações internacionais para contestar o sistema internacional vigente e propor uma "ordem econômica internacional". Daí decorreu a paralisia das duas organizações, o que pôs em xeque o multilateralismo.
Por conseguinte, as atuais tentativas de "diabolização" da OMC, sustentadas por algumas vozes do hemisfério Sul e certas ONGs em Seattle e Cancún, prestam um enorme desserviço aos nossos interesses.
Certamente inúmeras disfunções da OMC devem ser criticadas. Contudo enfraquecê-la como instituição seria retornar ao estado de natureza hobbesiano. Como defender os interesses dos países marginais e emergentes do sistema internacional: a selvageria provocada pela ausência de regras ou a presença, ainda que insuficiente, de um "guarda florestal"?
Não devemos confundir a luta para mudar as regras do jogo do comércio internacional, legitimamente preconizada, com sua simples supressão.
O Brasil participou ativamente na formação do G21, do qual nosso chanceler foi porta-voz. Pela primeira vez na história do GATT/OMC, um grupo de países do Sul coordena posições negociadoras, uma profunda inovação, que deve ser bem avaliada: "primo", não se trata do conjunto dos países do Sul, caso em que o grupo chamar-se-ia G120; "duo", há interesses setoriais diferenciados que tenderão a dividi-lo.
Enfim, existem 49 "países menos avançados" (PMAs) para os quais a abertura dos mercados consumidores europeu e norte-americano não traz nenhum resultado prático, pois dispõem de escassa pauta de exportações, para a qual já auferem vantagens tarifárias, e, em razão da permanente crise alimentar que os aflige, beneficiam-se de doações a fundo perdido. Portanto um novo ordenamento do comércio internacional agrícola não pode ser de cunho liberal, o que provocaria uma catástrofe humanitária de grandes proporções.
Por tudo isso, a interrupção do jogo em Cancún foi o mal menor, jamais o bem. Claro está que o Brasil, ao assumir, enfim, sua vocação de líder, opôs-se com coragem e competência a um acordo efetivamente inaceitável. No entanto essa constatação não deve suscitar um sentimento de euforia nacionalista. A intolerância dos países desenvolvidos deve ser percebida com tristeza e apreensão, pois o retrocesso do multilateralismo contraria, de fato, os nossos verdadeiros interesses nacionais.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 55, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra (Suíça), é professor titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor, entre outras obras, do "Manual das Organizações Internacionais".


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