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TENDÊNCIAS/DEBATES
O resultado da reunião da OMC em Cancún foi uma vitória para o Brasil?
NÃO
O "mal menor"
RICARDO SEITENFUS
Todos devem se sentir derrotados
quando uma conferência diplomática, cujas decisões só podem ser tomadas por consenso, como é o caso na
OMC, não consegue concluir a redação
de um texto básico após quatro anos de
negociações.
O fracasso de Cancún provocou, porém, a euforia dos "antimundialistas",
suposta sociedade civil internacional
que deve ser percebida com cautela.
Embora desprovidos de mandato e detentores de conceitos peculiares do interesse público, os movimentos que se
opõem à globalização têm grande influência nas negociações internacionais.
Em Cancún, seu objetivo foi inviabilizar qualquer resultado da conferência.
Barulhentos manifestantes opõem-se
aos fundamentos do comércio internacional e propugnam um retorno ao hipotético paraíso perdido que somente a
autarquia proporciona. Seriam eles
bons conselheiros ou proveitosa companhia para os países em desenvolvimento?
Mais significativa, no entanto, foi a
reação das organizações agrícolas européias e norte-americanas. A satisfação
mesclou-se ao alívio, pois nenhuma
concessão foi feita relativamente aos absurdos privilégios que protegem suas
atividades. Como explicar, por exemplo, que a Holanda exporte, em valores,
mais do que o dobro das exportações
agrícolas brasileiras e quase o triplo das
argentinas? Esses dados referem-se às
exportações agrícolas mundiais de
2000, conforme publicações oficiais da
OMC.
Quanto ao Brasil, a posição do governo está à altura da imensa complexidade das dificuldades que se apresentam.
O ministro Celso Amorim rejeita, com
razão, qualquer responsabilidade individual a respeito da ausência de resultado da conferência e, sobretudo, enfatiza
que a posição brasileira não se sustenta
em bases ideológicas, mas na defesa de
interesses concretos.
Tal atitude é fundamental para que
não haja a tentação de reeditar as crises
que sacudiram a Unesco e a OIT nos
anos 1970, quando o G77 tentou utilizar
a tribuna das organizações internacionais para contestar o sistema internacional vigente e propor uma "ordem
econômica internacional". Daí decorreu a paralisia das duas organizações, o
que pôs em xeque o multilateralismo.
Por conseguinte, as atuais tentativas
de "diabolização" da OMC, sustentadas
por algumas vozes do hemisfério Sul e
certas ONGs em Seattle e Cancún, prestam um enorme desserviço aos nossos
interesses.
Certamente inúmeras disfunções da
OMC devem ser criticadas. Contudo
enfraquecê-la como instituição seria retornar ao estado de natureza hobbesiano. Como defender os interesses dos
países marginais e emergentes do sistema internacional: a selvageria provocada pela ausência de regras ou a presença, ainda que insuficiente, de um "guarda florestal"?
Não devemos confundir a luta para
mudar as regras do jogo do comércio
internacional, legitimamente preconizada, com sua simples supressão.
O Brasil participou ativamente na formação do G21, do qual nosso chanceler
foi porta-voz. Pela primeira vez na história do GATT/OMC, um grupo de países do Sul coordena posições negociadoras, uma profunda inovação, que deve ser bem avaliada: "primo", não se
trata do conjunto dos países do Sul, caso
em que o grupo chamar-se-ia G120;
"duo", há interesses setoriais diferenciados que tenderão a dividi-lo.
Enfim, existem 49 "países menos
avançados" (PMAs) para os quais a
abertura dos mercados consumidores
europeu e norte-americano não traz nenhum resultado prático, pois dispõem
de escassa pauta de exportações, para a
qual já auferem vantagens tarifárias, e,
em razão da permanente crise alimentar que os aflige, beneficiam-se de doações a fundo perdido. Portanto um novo ordenamento do comércio internacional agrícola não pode ser de cunho liberal, o que provocaria uma catástrofe
humanitária de grandes proporções.
Por tudo isso, a interrupção do jogo
em Cancún foi o mal menor, jamais o
bem. Claro está que o Brasil, ao assumir,
enfim, sua vocação de líder, opôs-se
com coragem e competência a um acordo efetivamente inaceitável. No entanto
essa constatação não deve suscitar um
sentimento de euforia nacionalista. A
intolerância dos países desenvolvidos
deve ser percebida com tristeza e
apreensão, pois o retrocesso do multilateralismo contraria, de fato, os nossos
verdadeiros interesses nacionais.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 55, doutor
em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra (Suíça), é professor titular
do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor, entre outras
obras, do "Manual das Organizações Internacionais".
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