São Paulo, terça-feira, 20 de novembro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reparar as vítimas da escravidão

EDNA ROLAND

A Declaração e o Programa de Ação de Durban estabeleceram a relação entre a escravidão e o tráfico de escravos, de um lado, e o racismo e a discriminação racial, de outro: foram reconhecidos como causas e resultado do racismo. Estão entre as principais fontes do racismo e da discriminação (atuais), pois resultaram, entre outros fatores, de teorias e concepções racistas.
Da mesma forma, as desigualdades raciais foram reconhecidas como resultantes do racismo e da discriminação, de tal forma que a eliminação de tais disparidades coloca-se como necessidade imperiosa. O conceito de reparação impõe-se, portanto, como meio de restaurar os direitos humanos e as liberdades fundamentais atingidos pelos processos de discriminação.
Durban considerou a escravidão e o tráfico de escravos um crime contra a humanidade: horríveis tragédias na história, não apenas por causa do seu terrível barbarismo, mas pela sua magnitude, natureza organizada e especialmente por sua negação da essência das vítimas. Durban reconheceu também que os africanos e afro-descendentes foram vítimas desses atos e continuam a ser vítimas das suas consequências. Durban apela aos Estados envolvidos para honrarem a memória dos milhões de pessoas escravizadas como um meio de reconciliação e cura, contribuindo para restaurar a dignidade das vítimas por meios apropriados.


Durban considerou a escravidão e o tráfico de escravos um crime contra a humanidade, horríveis tragédias na história


Durban considera ainda que lembrar os crimes do passado e contar a verdade sobre a história são elementos essenciais para a reconciliação internacional e a criação de sociedades baseadas na justiça, na igualdade e na solidariedade.
Na discussão acerca das reparações, o tema da memória ocupa, portanto, um lugar relevante: não é possível reparar os danos do passado sem recuperar a dignidade das vítimas.
Para homenagear os 830 soldados mortos na Revolução Constitucionalista, foi construído em São Paulo um grandioso obelisco sobre o mausoléu dos heróis de 32. Em diversas cidades do mundo, foram erigidos museus do holocausto para que não seja esquecido o genocídio de 6 milhões de judeus. O Brasil importou 4 milhões de africanos durante os quatro séculos de tráfico transatlântico. A essas vítimas somaram-se 40 milhões de crioulos, escravos já nascidos em terras brasileiras. Foram inúmeras as revoltas e diversas as formas de resistência desenvolvidas pelos negros escravizados, dentre as quais os quilombos, dos quais Palmares é o exemplo maior. O Estado Brasileiro reconheceu Zumbi como herói nacional, todavia Domingos Jorge Velho e outros bandeirantes, responsáveis pela destruição de quilombos, continuam a ser homenageados. Não existe no Brasil nenhum monumento ou memorial aos 44 milhões de vítimas da escravidão.
É necessário que se constitua um movimento nacional pela reparação das vítimas da escravidão. Tal projeto deverá incluir a recuperação arquitetônica de sítios carregados de reminiscências do período da escravidão, especialmente os cemitérios de escravos. No Rio de Janeiro, o Paço Imperial, onde foi assinada a lei que deu forma jurídica ao fim da escravidão, continua distante dos descendentes daqueles que foram vítimas do mais horrendo crime da história da humanidade. Esse edifício, construído pelo braço escravo, seria muito apropriado para abrigar um memorial nacional às vítimas da escravidão.
O componente de recuperação da memória de um movimento nacional de reparações incluiria a renomeação de edifícios e logradouros públicos que hoje homenageiam indivíduos responsáveis por indizíveis sofrimentos impostos a milhões de vítimas. Parece-me inominável que o governo do Estado de São Paulo tenha como sede um edifício denominado Palácio dos Bandeirantes.
Além desses projetos voltados para a memória, uma política de reparação deverá principalmente voltar-se para as vítimas das consequências da escravidão. Um fundo nacional de reparações, constituído com recursos públicos e privados, deverá financiar políticas específicas para os afro-descendentes.
O conceito de reparação constitui-se também na base política e ética para os programas de ação afirmativa, instrumento central do combate às desigualdades raciais, previsto tanto na Declaração e no Programa de Ação de Durban quanto na própria Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.
O Estado brasileiro deve pedir desculpas formais aos afro-descendentes, sobreviventes de verdadeiras políticas de extermínio, através de ato solene a ser realizado em Brasília, quando deverá ser anunciado o conjunto de medidas reparatórias já em implementação ou a serem implementadas.
Enquanto persistirem disparidades raciais, continuaremos credores desta dívida.


Edna Maria Santos Roland, psicóloga, é relatora-geral da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata e presidente da Fala Preta! Organização de Mulheres Negras.



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