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JOSÉ SARNEY
As lágrimas de Lula
Sou da geração dos códigos rígidos do Nordeste, machistas e
duros, que podem ser resumidos na
máxima: "homem não chora". Menino, sempre tive juízo para não fazer o
que levaria a apanhar, prudente o bastante para não chorar e ser homem.
Tinha um primo, Fernando, cuja virtude, que o colocava acima de todos
nós, era apanhar dúzias de bolo e não
chorar da palmatória. Esse primo veio
para o Rio, transformou-se num cronista da noite, o Corujão, que durante
muitos anos fez coluna na "Tribuna
de Imprensa". Quando o encontrava,
repetia: "Fernando apanha, mas não
chora".
Lula não apanha e chora. Dois sentimentos profundos provocam, como
diz o extraordinário texto de Koestler,
a "contração involuntária dos dezessete músculos faciais que agem coordenadamente, a partir do zigomático
maior", no rir e no chorar. Um produz
expressões que vão do sorriso à gargalhada. Outro, da simples lágrima ao
soluço compulsivo.
Era tabu: político não chora. Mas eu,
tendo alma e sentimento, aprendi a
chorar com a garganta para os outros
não verem. E como choro! A primeira
vez que descobri dentro de mim essa
sensação de aperto no peito, essa torrente de lágrimas que não desciam
dos olhos, foi nos meus 14 anos, quando assisti ao filme "Casablanca" num
cinema de província. Ao ver Ingrid
Bergman tomar o avião, Bogart arrancar um cigarro para queimar a tristeza, minha garganta fechou e eu descobri que homem não chorar é mentir,
chorar com os olhos é a humildade de
deixar os outros verem o que se vê,
chorar com a garganta é um sacrifício
que torna o chorar mais dolorido do
que o chorar.
Lula comoveu o país. Suas lágrimas
eram aquelas lágrimas que não nascem nos seus olhos, mas na sua vida.
O padre Vieira dizia que "as mais
bem-nascidas lágrimas que nunca se
choraram no mundo foram as de São
Pedro", porque "tiveram seu nascimento nos olhos de Cristo". E indagava, conclusivo: "Sabeis por que choram os olhos? Porque vêem".
Lula chorou pela sua vida. Suas lágrimas vêm do sofrido povo nordestino, gente de andantes cuja dor começa naquilo que lhe é negado pela lágrima dos céus: a chuva. Elas passam pela figura de sua mãe, tão forte em seu
lembrar -e como as mães marcam as
vidas de retirantes! Digo em causa
própria, no amor a dona Kiola, que
saiu de Pernambuco na seca de 21 para os vales úmidos do Maranhão.
Quando vejo as tias de Lula e seus irmãos, aquela gente rija e sofrida, tenho orgulho do Brasil. Em nenhum
país do mundo isso poderia ocorrer.
Suas lágrimas têm a cor da saga do
operário, do homem sensível, humano e grato, que foi torneiro, que consumiu os dias e os dedos na monotonia da forja. Sua luta, como todas as
lutas e de todas as vidas, é cheia de vitórias e fracassos. Com uma diferença:
a sua é um símbolo para os brasileiros.
Getúlio ficou conhecido pela sua
gargalhada. Era um presidente que
gostava de rir: pegava o charuto e ria à
toa. Seu riso era o instrumento político da plenitude do poder -ele, mais
do que ninguém, um homem de poder. Lula humanizou o chorar, transformando-o de uma reação compulsiva em sentimento da vida. Deixou de
ser uma contração muscular que se
derrama pelo mecanismo do corpo.
Foi uma maneira de dizer ao Brasil: se
eu cheguei a receber este primeiro diploma, vocês, brasileiros, tenham fé
neste país. Ele é maior que todos nós.
Como Churchill, "never quit" (jamais
desistir).
Vem chegando o Natal. As lágrimas
do presidente são marcas deste fim de
ano. Lembram que há razão para esperança. Voltemos a Vieira:
"Os olhos que chorarem na terra verão no céu".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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