São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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JOSÉ SARNEY

As lágrimas de Lula

Sou da geração dos códigos rígidos do Nordeste, machistas e duros, que podem ser resumidos na máxima: "homem não chora". Menino, sempre tive juízo para não fazer o que levaria a apanhar, prudente o bastante para não chorar e ser homem. Tinha um primo, Fernando, cuja virtude, que o colocava acima de todos nós, era apanhar dúzias de bolo e não chorar da palmatória. Esse primo veio para o Rio, transformou-se num cronista da noite, o Corujão, que durante muitos anos fez coluna na "Tribuna de Imprensa". Quando o encontrava, repetia: "Fernando apanha, mas não chora".
Lula não apanha e chora. Dois sentimentos profundos provocam, como diz o extraordinário texto de Koestler, a "contração involuntária dos dezessete músculos faciais que agem coordenadamente, a partir do zigomático maior", no rir e no chorar. Um produz expressões que vão do sorriso à gargalhada. Outro, da simples lágrima ao soluço compulsivo.
Era tabu: político não chora. Mas eu, tendo alma e sentimento, aprendi a chorar com a garganta para os outros não verem. E como choro! A primeira vez que descobri dentro de mim essa sensação de aperto no peito, essa torrente de lágrimas que não desciam dos olhos, foi nos meus 14 anos, quando assisti ao filme "Casablanca" num cinema de província. Ao ver Ingrid Bergman tomar o avião, Bogart arrancar um cigarro para queimar a tristeza, minha garganta fechou e eu descobri que homem não chorar é mentir, chorar com os olhos é a humildade de deixar os outros verem o que se vê, chorar com a garganta é um sacrifício que torna o chorar mais dolorido do que o chorar.
Lula comoveu o país. Suas lágrimas eram aquelas lágrimas que não nascem nos seus olhos, mas na sua vida. O padre Vieira dizia que "as mais bem-nascidas lágrimas que nunca se choraram no mundo foram as de São Pedro", porque "tiveram seu nascimento nos olhos de Cristo". E indagava, conclusivo: "Sabeis por que choram os olhos? Porque vêem".
Lula chorou pela sua vida. Suas lágrimas vêm do sofrido povo nordestino, gente de andantes cuja dor começa naquilo que lhe é negado pela lágrima dos céus: a chuva. Elas passam pela figura de sua mãe, tão forte em seu lembrar -e como as mães marcam as vidas de retirantes! Digo em causa própria, no amor a dona Kiola, que saiu de Pernambuco na seca de 21 para os vales úmidos do Maranhão. Quando vejo as tias de Lula e seus irmãos, aquela gente rija e sofrida, tenho orgulho do Brasil. Em nenhum país do mundo isso poderia ocorrer. Suas lágrimas têm a cor da saga do operário, do homem sensível, humano e grato, que foi torneiro, que consumiu os dias e os dedos na monotonia da forja. Sua luta, como todas as lutas e de todas as vidas, é cheia de vitórias e fracassos. Com uma diferença: a sua é um símbolo para os brasileiros.
Getúlio ficou conhecido pela sua gargalhada. Era um presidente que gostava de rir: pegava o charuto e ria à toa. Seu riso era o instrumento político da plenitude do poder -ele, mais do que ninguém, um homem de poder. Lula humanizou o chorar, transformando-o de uma reação compulsiva em sentimento da vida. Deixou de ser uma contração muscular que se derrama pelo mecanismo do corpo. Foi uma maneira de dizer ao Brasil: se eu cheguei a receber este primeiro diploma, vocês, brasileiros, tenham fé neste país. Ele é maior que todos nós. Como Churchill, "never quit" (jamais desistir).
Vem chegando o Natal. As lágrimas do presidente são marcas deste fim de ano. Lembram que há razão para esperança. Voltemos a Vieira:
"Os olhos que chorarem na terra verão no céu".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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