São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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MARCELO BERABA

A mulher, o PM e o traficante

RIO DE JANEIRO - A favela está ocupada por policiais, depois de dias seguidos de tiroteios entre traficantes que disputam o controle da área.
A comunidade tem medo, como sempre. Há muito tempo não sabe o que é viver em paz, sem balas perdidas, sem ameaças, sem a violência dos três exércitos em guerra -os donos do morro, os "alemães" que querem invadi-lo e os policiais que vão e voltam e não resolvem nada.
Nesse dia, até que a polícia estava tranquila e não entrou esculachando. Mesmo assim, convém não se expor nem dar mole.
O soldado, cansado, parece desconhecer as regras do tráfico. Ou fez de propósito. Aproveitou a porta entreaberta e enfiou a cabeça dentro da casa. Chamou. Acudiu uma mulher, que ficou apavorada quando viu que se tratava de um policial.
Ele pediu água, apenas água. Ela tremia, sabia que não podia matar a sede do infeliz, melhor teria sido se não tivesse atendido, se tivesse se fingido de surda e ficado no canto dela, nos fundos. Mas agora era tarde. Abriu a geladeira e serviu a água. O soldado bebeu e saiu. Os policiais ficaram ainda um tempo no morro e foram embora.
Não demorou para descer a ordem do gerente do movimento: a mulher que serviu água para o soldado está condenada. Vai passar pela mão do bando e depois morrer.
O cara da associação era amigo do gerente e tentou interceder. A mulher não tinha outra saída. O que podia fazer, negar água para o soldado? Ela foi obrigada. O gerente não queria conversa. Infringiu a lei, tem de morrer. O cara da associação insistiu. Não tinha argumentos, mas tinha crédito e moral. Conseguiu uma única concessão: ela deixa o morro agora, larga tudo para trás, some. Se ainda estiver por aqui quando amanhecer, aplica-se a lei.
A mulher trocou o seu passado, os vizinhos, os parentes, a casa e os trecos que tinha juntado por uma sobrevida.


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