São Paulo, sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Violência e justiça

TAÍS GASPARIAN

A criação de uma Secretaria de Estado da Segurança, defendida por muitos, diretamente vinculada à Presidência da República representaria um esvaziamento do Ministério da Justiça. Atualmente o Ministério da Justiça coordena a área da segurança pública, mediante a Secretaria Nacional de Segurança Pública, criada em 2000.
Os defensores da mudança afirmam que o ministério já trata de assuntos demais: do antitruste à questão indígena, dos direitos humanos à Polícia Federal, estão também a ele vinculados os assuntos relacionados ao Denatran, ao sistema penitenciário, aos estrangeiros, à anistia, aos direitos da mulher e aos consumidores. De fato, o Ministério da Justiça possui uma gama invejável de áreas de interesse. E é exatamente isso o que lhe dá a possibilidade de estabelecer uma política pública capaz de tratar, de modo racional e sistemático, a questão da violência, em todas as acepções do termo. Porque violência não se resume à segurança.
A criação de uma secretaria de Estado com a função específica de tratar do tema da segurança e diretamente ligada ao presidente da República, como se este fosse interferir pontualmente em cada uma das decisões a serem tomadas, compreende um caráter axiologicamente tido como positivo, funcionando como importante instrumento de mobilização política.
Contudo a criação dessa secretaria dificilmente propiciaria que os diversos aspectos da violência fossem mais bem tratados do que o são com a estrutura atual. Veja-se que um dos importantes focos de violência é aquele cometido no seio familiar. A violência "doméstica", por assim dizer, praticada contra crianças, mulheres e idosos, é assustadora. Não há controle nenhum, raramente é divulgada ou denunciada, por vergonha ou medo de humilhação, e pouquíssimo considerada quando se trata do estabelecimento de políticas públicas.
O Relatório Mundial de Violência e Saúde, produzido pela Organização Mundial da Saúde e lançado em português no final de novembro pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos, traz informações impressionantes. Os dados colhidos sugerem que, em alguns países, quase 25% das mulheres são vítimas de violência perpetrada por um parceiro íntimo.
Outro estudo revela que quase um terço das adolescentes relata ter se iniciado na vida sexual de forma violenta (estupro e abusos de modo geral). O mesmo relatório traz o significativo dado, resultante de pesquisa realizada no Rio de Janeiro em 1996, de que 8% da mulheres relatam ter sido vítimas de ataque sexual. Não se percebe, exatamente, qual o benefício extra que traria a criação de uma Secretaria de Estado da Segurança na abordagem dessas questões.


A forma como a mídia aborda os fatos violentos acaba por dar uma dimensão distorcida de certos atos criminosos


É inegável que o crescimento da violência é um dado real, que merece firme e constante atuação do governo federal, não fosse por outra razão, no mínimo por representar um alto custo para a sociedade. Estudo do BID realizado em 1996/97 estima que, no Brasil, o custo direto decorrente da violência tenha representado quase 2% do PIB. Atualmente, há quem diga que essa porcentagem chega a 10%.
A percepção dos diversos tipos de violência não corresponde exatamente aos dados da realidade. A forma como a mídia aborda os fatos violentos, por exemplo, acaba por dar uma dimensão distorcida de certos atos criminosos.
O sociólogo Tulio Kahn, em capítulo do livro "Cidades Blindadas" (ed. Sicurezza), de sua autoria, analisa a relação entre criminalidade e meios de comunicação. Ele demonstra que muitas vezes é a cobertura da mídia -e não as escassas pesquisas de criminologia- que mais exerce influência sobre a administração da Justiça. Narra ele, nesse estudo, que os pequenos furtos e as lesões corporais são, de longe, os delitos mais frequentes nas estatísticas oficiais de criminalidade, mas são praticamente esquecidos pelos jornais, até por não despertarem grande curiosidade.
Os sequestros, estupros, chacinas e tráfico de drogas, que estão sempre presentes na mídia, representam, proporcionalmente, um número muito menor dos atos que compõem o quadro da violência atual.
Pesquisa realizada pelo Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), sobre a comparação da incidência de crimes na mídia e nos dados oficiais, durante determinado período de 1998, em São Paulo, revela que, muito embora o sequestro tenha representado, naquele período, cerca de 0,0001% da totalidade dos crimes registrados na polícia, ele representou 10% dos crimes noticiados pelos jornais.
Essa sistemática, repetida ao longo do tempo, faz com que não apenas a sociedade tenha uma visão desfocada da realidade, como também acaba por justificar políticas públicas igualmente distorcidas, com pouco ou nenhum efeito sobre a violência, que, sem nada que a detenha, segue sua curva ascendente.
A violência é um tema plurifacetado, com inúmeras causas, e deve ser tratada de modo abrangente. Não é por outra razão que está sob a órbita de competência do Ministério da Justiça, que congrega um amplo espectro de áreas de interesse da sociedade e está, por esse motivo, mais apto a tratar do problema.

Taís Gasparian, 44, advogada, mestre em direito pela USP, é chefe-de-gabinete do ministro da Justiça.


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