São Paulo, quarta-feira, 21 de janeiro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Os filhos dos pobres
MARCELO MEDEIROS
Parece, mas não é. Há anos pesquisadores apontam que a maior parte da pobreza não se deve ao fato de as famílias pobres serem relativamente maiores que as famílias não-pobres. Um estudo recente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostra que um controle de natalidade radical, mais rigoroso que qualquer um realizado no mundo até hoje, restringiria muito a liberdade reprodutiva das mulheres brasileiras, mas teria efeitos insignificantes sobre a incidência da pobreza no país. Mesmo na situação, hipotética e absurda, de todas as mulheres serem sumariamente proibidas de ter filhos, a proporção de pobres se manteria aproximadamente a mesma ao longo da próxima década. Há uma razão óbvia para isso: as mulheres pobres já têm poucos filhos. A partir da década de 1980 se tornou claro que a fecundidade no Brasil estava diminuindo bastante e, hoje, a média brasileira não é muito maior do que a observada em países bem mais ricos. Em um país onde pelo menos dois terços das pessoas vivem em torno da pobreza, médias como essa expressam sempre o que ocorre com a população de mais baixa renda. Níveis de fecundidade 20% mais baixos que os nossos já são insuficientes para compensar a mortalidade e são considerados excessivamente baixos pelos governos de alguns países europeus preocupados com as conseqüências sociais negativas da baixa fecundidade em suas populações. Estudos, também do Ipea, sobre as mudanças ocorridas na composição das famílias brasileiras ao longo dos últimos 30 anos indicam que, hoje, a proporção de domicílios que têm mais de três filhos com idade inferior a dez anos não chega a 3% do total de domicílios brasileiros. Famílias enormes estão cada vez mais raras, fazendo com que medidas controlistas sequer possam ser aplicadas a grandes parcelas da população. Isso leva, forçosamente, à conclusão de que uma política de erradicação da pobreza baseada no controle da fecundidade provavelmente será uma perda de tempo e dinheiro em ações destinadas ao fracasso. Diagnósticos equivocados sobre o comportamento das famílias brasileiras também têm subsidiado discussões sobre a restrição do número de filhos que podem ser beneficiados por um programa social, especialmente transferências de renda. Em geral o argumento usado é de que beneficiar os filhos dos pobres pode promover uma explosão da fecundidade e, por isso, transferências como as do Bolsa-Família devem ser limitadas a no máximo três crianças por família. Além de sugerir que se abandone quem mais precisa delas, essas propostas carecem completamente de fundamento científico. Vão justamente na contramão de todas as pesquisas brasileiras que mostram que, com renda suficiente, informação e disponibilidade de métodos contraceptivos, as famílias preferem ter um número pequeno de filhos. Dizer que a possibilidade de receber uma bolsa é suficiente para estimular milhares de famílias a ter filhos é ou ingenuidade ou uma proposta dissimulada para reduzir custos dos programas excluindo os mais pobres. Pensar que a miséria no Brasil decorre do tamanho excessivo das famílias é uma maneira confortável de se transferir para os pobres a responsabilidade por sua pobreza. O discurso fácil do controle da natalidade, porém, não enfrenta o que realmente é grave e está por trás da pobreza e de outros problemas no país: a desigualdade social. Quando a questão é vista por esta outra ótica, a pobreza deixa de ser um problema dos filhos dos pobres e passa a ser uma responsabilidade de todos nós. Marcelo Medeiros, 34, é economista, doutor em sociologia e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Ali Abdouni e Jihad Hassan: O véu e o preconceito Índice |
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