São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A verdade acima de tudo

RIO DE JANEIRO - Um leitor especializado em distâncias denunciou-me um erro cometido em crônica desta semana. Dizia eu que os 50 litros de combustível gastos para ir do Rio a Barra do Piraí eram exagerados. Com metade disso, num carro bem regulado, eu poderia ir e voltar a uma cidade onde na realidade não pretendo ir.
Dei o exemplo forçado pela gastança de combustível nas viagens aéreas. Um par de óculos esquecido num Jumbo custa exatos 50 litros de querosene numa viagem mais longa.
Bem, sempre que me advertem em nome do rigor histórico ou científico, eu lembro aquele episódio do animador Flávio Cavalcanti, que tinha um programa na TV intitulado, se não me engano, "Um Instante, Maestro!".
Ele fiscalizava as letras das músicas populares, apontando erros de gramática ou de informação, baseado sempre no rigor histórico ou científico. Quebrava os discos, que naquele tempo eram quebráveis, em sinal de protesto.
Quando Adoniran Barbosa estourou com o seu "Trem das Onze", Flávio não perdoou aquele sucesso que se tornaria um clássico do nosso cancioneiro. Havia a queixa do autor, "se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã". Verso que, por sinal, daria título à música.
Flávio mandou tocar o disco. Quando os Demônios da Garoa chegaram ao trecho em questão, Flávio gritou: "Um instante, maestro!". Tirou o disco da mesa de som, mostrou o horário oficial dos trens que serviam Jaçanã e provou, por "a" mais "b", que, depois do trem das onze, havia um outro, que saía à meia-noite para o mesmo destino. Em véspera de domingos, feriados e dias santificados, havia um outro, bem depois da meia-noite. Indignado, quebrou o disco diante das câmaras.
Sempre que apelam para o rigor histórico e factual, lembro o episódio do trem das onze, no qual, por sinal, Adoniran deixou um dos versos mais deliciosos de nossa literatura: "Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar".


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