São Paulo, terça-feira, 21 de março de 2000


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Um filólogo

ARIANO SUASSUNA

A primeira aula-espetáculo que dei em minha vida aconteceu no Teatro de Santa Isabel, do Recife, em 26 de setembro de 1946. Teve como assunto central o nosso rico e variado romanceiro, e para ela contei com a ajuda de um poeta popular, Manuel de Lira Flores, e de três dos maiores cantadores que o Brasil já teve, os irmãos Batista -Dimas, Otacílio e Lourival (mais conhecido como Louro de Pajeú).
No dia 26 de setembro de 1996, comemorando os 50 anos daquela aula, organizei a "Grande Cantoria Louro do Pajeú", da qual participaram duas cantadoras, Mocinha de Passira e Minervina Ferreira, e dois cantadores, Oliveira de Panelas e Otacílio Batista, este último o único sobrevivente da aula de 1946.
Um dado a ser levado em conta é que, em ambas as aulas, enfatizei a origem ibérica do nosso romanceiro; mas, ao mesmo tempo, não me esqueci de fazer o que normalmente faço em tais ocasiões: lembrar que, quando os portugueses chegaram ao Brasil, já encontraram por aqui um teatro, uma pintura, uma dança, uma literatura oral, uma escultura em pedra, uma cerâmica -enfim, uma cultura que, juntamente com a negra e outras que vieram depois, não pode ser deixada de lado em qualquer reflexão que se faça sobre nosso povo.
Faço essa introdução pessoal e arbitrária para me referir a Eduardo Navarro, cujo excelente trabalho de artista e filólogo de certa maneira reúne aquelas duas vertentes da cultura brasileira a que me referi, das quais normalmente uma é esquecida. Em 1999, Navarro publicou um livro sobre o teatro de Anchieta, que, como diz o artista-filólogo, escrevia "nas três línguas mais faladas na América portuguesa" -o português, o castelhano e a língua brasílica, aquele "grego da terra" ao qual se referem os cronistas dos três primeiros séculos da presença ibérica em nosso país.
Assim é que, no auto intitulado "Na Aldeia de Guaraparim", graças a Eduardo Navarro, encontramos, em português, versos como os que seguem e em que um demônio chamado Tatapitera fala de um jeito que lembra os personagens de Aristófanes: "Transtorno o coração das velhas, irritando-as, fazendo-as brigar. Por isso mesmo as malditas correm como faíscas de fogo, para ficar atacando as pessoas, insultando-se muito umas às outras".
Eduardo Navarro costuma falar na "beleza e musicalidade" do nosso "grego da terra", da "língua geral", uma das causas do infortúnio que acabou por aniquilar o imortal personagem de Lima Barreto, Policarpo Quaresma. Defendendo a cultura brasileira, às vezes zombo de mim mesmo, sentindo-me como um descendente de Quaresma, um Quaresma contemporâneo, mas tão extraviado e inoportuno quanto o primeiro.
Mas recobro o ânimo e sigo adiante. O que importa é teimar na luta, anunciando que agora Eduardo Navarro publica um "Dicionário da Língua Brasílica" que vai prestar mais um valioso serviço aos que se interessam pelo povo do Brasil real e desejam vê-lo liberto das cadeias com as quais, desde 1500, o país oficial o vem subjugando e sufocando.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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