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Um filólogo
ARIANO SUASSUNA
A primeira aula-espetáculo que dei
em minha vida aconteceu no Teatro
de Santa Isabel, do Recife, em 26 de setembro de 1946. Teve como assunto
central o nosso rico e variado romanceiro, e para ela contei com a ajuda de
um poeta popular, Manuel de Lira
Flores, e de três dos maiores cantadores que o Brasil já teve, os irmãos Batista -Dimas, Otacílio e Lourival
(mais conhecido como Louro de Pajeú).
No dia 26 de setembro de 1996, comemorando os 50 anos daquela aula,
organizei a "Grande Cantoria Louro
do Pajeú", da qual participaram duas
cantadoras, Mocinha de Passira e Minervina Ferreira, e dois cantadores,
Oliveira de Panelas e Otacílio Batista,
este último o único sobrevivente da
aula de 1946.
Um dado a ser levado em conta é
que, em ambas as aulas, enfatizei a origem ibérica do nosso romanceiro;
mas, ao mesmo tempo, não me esqueci de fazer o que normalmente faço em
tais ocasiões: lembrar que, quando os
portugueses chegaram ao Brasil, já encontraram por aqui um teatro, uma
pintura, uma dança, uma literatura
oral, uma escultura em pedra, uma cerâmica -enfim, uma cultura que,
juntamente com a negra e outras que
vieram depois, não pode ser deixada
de lado em qualquer reflexão que se
faça sobre nosso povo.
Faço essa introdução pessoal e arbitrária para me referir a Eduardo Navarro, cujo excelente trabalho de artista e filólogo de certa maneira reúne
aquelas duas vertentes da cultura brasileira a que me referi, das quais normalmente uma é esquecida. Em 1999,
Navarro publicou um livro sobre o
teatro de Anchieta, que, como diz o artista-filólogo, escrevia "nas três línguas mais faladas na América portuguesa" -o português, o castelhano e
a língua brasílica, aquele "grego da
terra" ao qual se referem os cronistas
dos três primeiros séculos da presença
ibérica em nosso país.
Assim é que, no auto intitulado "Na
Aldeia de Guaraparim", graças a
Eduardo Navarro, encontramos, em
português, versos como os que seguem e em que um demônio chamado Tatapitera fala de um jeito que lembra os personagens de Aristófanes:
"Transtorno o coração das velhas, irritando-as, fazendo-as brigar. Por isso
mesmo as malditas correm como faíscas de fogo, para ficar atacando as pessoas, insultando-se muito umas às outras".
Eduardo Navarro costuma falar na
"beleza e musicalidade" do nosso
"grego da terra", da "língua geral",
uma das causas do infortúnio que acabou por aniquilar o imortal personagem de Lima Barreto, Policarpo Quaresma. Defendendo a cultura brasileira, às vezes zombo de mim mesmo,
sentindo-me como um descendente
de Quaresma, um Quaresma contemporâneo, mas tão extraviado e inoportuno quanto o primeiro.
Mas recobro o ânimo e sigo adiante.
O que importa é teimar na luta, anunciando que agora Eduardo Navarro
publica um "Dicionário da Língua
Brasílica" que vai prestar mais um valioso serviço aos que se interessam pelo povo do Brasil real e desejam vê-lo
liberto das cadeias com as quais, desde
1500, o país oficial o vem subjugando e
sufocando.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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