|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Livros e matanças
O livro, tão esquecido, teve seus
momentos de visibilidade na última semana, quando os holofotes da
mídia se dirigiram para o roubo de velhos "in folio", preciosidades raras
que, tranqüilas, viviam o sono eterno
das estantes silenciosas das bibliotecas
e museus.
Há pouco tempo, o Congresso votou
o Estatuto do Idoso, visando ao bem-estar e ao respeito à velhice, contra essa costumeira postura de ridicularizá-la nas histórias, contadas às crianças,
de "Era uma vez uma velha coroca,/
Nariz de taboca,/ Da perna torta".
O noticiado roubo do livro está
mostrando que devemos fazer uma
lei que seja o Estatuto do Livro Idoso,
para que este seja bem tratado, seguro
contra a poeira, protegido contra fungos, umidade, insetos, traças e larápios.
Nestes tempos de tortura, em que
alguns soldados americanos que chegaram ao Iraque com a cabeça pornô
pegaram aqueles árabes, fiéis às leis rígidas do Alcorão, e os fizeram tirar a
roupa e fazer coisas de "corar frades
de pedra", também aqui, agora, vemos a tortura dos livros velhos. No
Museu Nacional, sem fotografia, submeteram o William Pison, no seu tratado de "História Natural do Brasil", a
uma crueldade monstruosa. As páginas amareladas pelo tempo, cansadas
pelo peso dos anos e abandonadas, foram seduzidas por um rapaz, estudante de biblioteconomia, que, disfarçado de pesquisador, de gilete na
mão, fio bem afiado, lhe dilacerou as
folhas, carnes indefesas, e passou a
cortá-las para tirar sua identidade, decepar-lhe as mãos e deformar-lhe o
rosto.
Os pobres livros não têm segurança
pessoal, polícia e guarda como nós.
Vivem em absoluta miséria, sem verbas, sem a mínima segurança. O resultado é o que se viu. O velho livro
sangrando e de páginas cortadas foi
bater numa feira de bregueces, ultrajado como se fosse inutilidade. Um
sujeito de bom coração tem pena dele,
compra-o compungido (?) e resolve
levá-lo para casa. Aí descobre que o
pobre velhinho era de morada conhecida, o Museu Nacional, este também
passando fome e miséria, sem pão
nem água.
O livro -repito- é a maior descoberta tecnológica feita pelo homem:
cai e não quebra, não precisa de energia nem de ser ligado. Tem todos os
inimagináveis programas de computador, viagens, ficção, ciência, tudo e
tudo. Como se diz nas escolas de samba, merece respeito e passagem.
O mundo, entretanto, está difícil
não só para os velhos livros mas também para os homens que lêem livros.
Nossos olhos já estão cansados de ver
o que se passa na brutalidade dos
bombardeios e matanças que se fazem em Gaza e no Iraque.
Para encontrar coincidências, lembro que bem próximo dali, no Oriente
Médio, onde hoje se matam, esmagam, dilaceram, torturam e pisoteiam
seres humanos, em Alexandria, existiu uma biblioteca famosa, zelada por
Eratóstenes, aquele mesmo que calculou certinho, sem computador ou satélite, o diâmetro da Terra. Era o
maior tesouro de livros antigos. Foi
saqueado e queimado.
Na Antiguidade, como hoje, livros e
homens são torturados e mortos, enquanto, para mostrar coisas novas, as
soldadas americanas pra-frentinhas e
excitadas se divertem com iraquianos
pelados, sem gilete.
Haja Bush e mundo.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Claudia Antunes: Histórias da carochinha Próximo Texto: Frases Índice
|