São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O poder dos atores globais

GILBERTO DUPAS

Podemos agrupar os atores do novo jogo global em três áreas principais: capital, sociedade civil e Estado. Nos anos mais recentes, os grupos terroristas adquiriram o status de novos atores mundiais, disputando com os Estados o monopólio da violência.
A autonomia dos Estados nacionais, cujo paradigma atual é a hegemonia norte-americana, é hoje continuamente questionada pelos atores econômicos globais. Note-se que os próprios EUA, que detêm sozinhos 32% do PIB mundial, descobrem-se reféns de um déficit comercial anual de US$ 450 bilhões, causado em grande parte pelas suas grandes corporações, que preferem produzir mais barato fora do país.
A globalização contemporânea é uma força normativa que impõe diretrizes e política. Se elas conduzem a crises graves ou becos sem saída -a Argentina é caso exemplar-, o país que assuma sozinho o risco de haver se comportado como lhe foi exigido. O sistema internacional, cujo sucesso dos seus atuais países ricos foi erguido infringindo sistematicamente essas normas, lava suas mãos. Através de instrumentos como o "investiment grade", decide-se quem se comportou de acordo ou não com as expectativas. Os primeiros estão incluídos no jogo; os outros serão excluídos e sofrerão as duras sanções do fluxo de investimentos, geneticamente estruturado para ter coração de passarinho e pernas de lebre.


A globalização contemporânea é uma força normativa que impõe diretrizes e política


Os Estados nacionais vêem-se pressionados em duas frentes. Exige-se um Estado minimalista, no qual a autonomia se reduz a opções restritas à aplicação das normas neoliberais. De outro lado, desregulam-se os mercados, privatizam-se os serviços e assiste-se a uma progressiva deterioração do quadro social, o que, paradoxalmente, requer um Estado forte e um aparato regulador muito eficiente, até para ter o poder de impor à sociedade civil condições penosas como as indexações das tarifas superiores ao aumento dos salários, consideradas necessárias à remuneração adequada dos capitais.
Os Estados, especialmente os grandes países da periferia, são obrigados a baixar cada vez mais os custos dos seus fatores de produção para atrair partes das cadeias produtivas das grandes corporações transnacionais; é a chamada estratégia de especialização, fortemente competitiva e predadora, que estimula um rebaixamento geral dos custos gerais da mão-de-obra e uma guerra de isenções tributárias. Dessa maneira a China está tomando do México boa parte dos empregos das maquiladoras, conseguidos a duras penas após a adesão ao Nafta. Para tentar competir, o México terá que reduzir ainda mais seus custos, provocando novas quedas em outros países e assim por diante.
Como essas nações acrescentam baixo valor tecnológico à sua produção local, ao se integrarem nas cadeias globais acabam gastando com suas importações mais do que conseguem ao exportar; e não são capazes de obter os benefícios sociais do aumento do fluxo de comércio, como foi o caso do México. Essa estratégia paga um alto preço com a redução progressiva de margens de ação, erosão da soberania nacional e das condições de governabilidade.
Quanto à sociedade civil, seu poder se limita pelo enfraquecimento contínuo dos movimentos sindicais, incapazes de se viabilizarem no suporte ao crescente volume de trabalho informal e de desemprego, acarretados especialmente pelos processos intensos de terceirização e de automação.
O caso recente do Brasil merece especial atenção. Os sindicatos, especialmente os mais à esquerda, foram essenciais à eleição de Lula e seus líderes passaram a ocupar importantes funções na máquina do governo. Agora, eles têm que assistir -em posição muito desconfortável- à contínua deterioração dos salários, ao aumento do desemprego e da informalidade que mantém a rota da última década e meia, só rapidamente interrompida durante os dois anos do pós-Plano Real. A ação das ONGs e dos movimentos sociais tem avançado bastante, no entanto sem saber a quem reivindicar e como influir na alteração mais ampla do processo global e nacional, que conduz a progressivas assimetrias, aumento da pobreza e concentração de renda e poder.
É preciso ressaltar um ator muito especial dentro da nova lógica econômica global, que ainda está fora do jogo e pode assumir um papel fundamental no equilíbrio futuro do poder: o consumidor, o gigante adormecido, que, como bem lembra Ulrich Beck, poderia transformar seu ato de compra em um voto (ou veto) sobre o papel político dos grandes grupos em escala mundial -em temas tão vitais como automação e desemprego, poluição ambiental e tecnologias perigosas-, lutando com suas próprias armas: o dinheiro, a recusa de comprar.
Mas, para que isso não seja mera utopia, muito há de ser feito em escala transnacional. Enquanto vários países estiverem disputando a tapa esses investimentos e jogando desarticuladamente -uns contra os outros-, essas ações da sociedade civil meramente levarão as grandes empresas a brandirem sua ameaça fatal: a opção-saída, ou seja, vou embora, não brinco mais. E ficamos nós no pior dos mundos.

Gilberto Dupas, 61, economista, é coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e autor de "Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado" (Paz e Terra), entre outras obras.


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