São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

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JOSÉ SARNEY

O povo no supermercado

Gilberto Amado, em brilhante teoria, analisando a Velha República, dizia que nela as eleições não eram autênticas, mas a representação era legítima. Escolhiam-se os melhores. Foi um tempo de construção de grandes quadros políticos do país. Hoje, se aceitarmos a tese predominante, alimentada aqui dentro e lá fora, quem vai escolher é o mercado. Assim, teremos eleições autênticas e representações ilegítimas.
Estamos vivendo uma sucessão atípica. Primeiro pela decisão da Justiça Eleitoral de mudar a regra do jogo com a desastrada "verticalização", que tornou um caos a vida partidária. Segundo, porque até agora não se discutiu outra coisa senão se Lula "cria ou não cria pânico no mercado". O subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Taylor, já alertou: "A turbulência do Brasil tem causas nas incertezas políticas em relação às eleições de outubro". Soros foi mais claro: "O mercado vai impor Serra". E a oposição submete-se a essa agenda num círculo de ferro?
Vejam como as coisas mudam. Estive em Buenos Aires no fim do governo Menem. A propaganda avassaladora era "Dez anos que mudaram a Argentina". E o economista Rudy Dornbusch, em conferência feita naqueles dias, dizia que o único problema argentino era o Brasil. E Menem pedia votos nessa competição Brasil versus Argentina, espalhando o medo de a Argentina virar Brasil.
Brasil é Brasil; Argentina é Argentina. Devemos nos preocupar é com o Brasil virar Brasil. Não são as eleições que nos ameaçam. São os nossos números. Enquanto dependermos de recursos externos para fechar nossas contas, estaremos vulneráveis. Enquanto a taxa de juros for a terceira maior do mundo, a de desemprego for de 20,4%, em São Paulo, o PIB cair 0,6%, o fluxo de capitais externos diminuir; enquanto estivermos disputando a pior distribuição de renda com a Suazilândia e com a África do Sul e o nosso risco-país estiver abaixo apenas do da Argentina, nossa vulnerabilidade não será a eleição.
No mais, temos também estrutura diferente da da Argentina. O Brasil tem um sistema de câmbio flexível e grande parque industrial, sua dívida interna está em mãos de brasileiros e o seu sistema político, que, com todos os defeitos, sempre se une, evitando crises -prova de responsabilidade- , é diferente do argentino. Temos a Lei de Responsabilidade Fiscal e a União exerce controle sobre as regras que ditam a política financeira dos Estados. Tudo isso nos assegura que essa discussão é falsa. A verdadeira é sobre os números do Brasil. Quantas crises enfrentou o governo atual? Foram feitas por perspectiva de resultado de eleição?
Esse avassalador predomínio do econômico e da ameaça de pânico mata o debate político. Inibe a discussão sobre a grave situação social, a injustiça da concentração de renda, o aumento e o agravamento dos desníveis regionais, a dramática situação do saneamento básico, da saúde, do desemprego e as alternativas de solução.
Antigamente, os candidatos podiam fazer promessas, suscitar esperanças, criar sonhos no coração do povo. Hoje, nem isso está sendo permitido. "Do mercado, com o mercado e pelo mercado" -é o compromisso de fé das vivandeiras do mercado. Isto é, a eleição e o povo vão ser mercado, ou melhor, supermercado.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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