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JOSÉ SARNEY
O povo no supermercado
Gilberto Amado, em brilhante
teoria, analisando a Velha República, dizia que nela as eleições não
eram autênticas, mas a representação
era legítima. Escolhiam-se os melhores. Foi um tempo de construção de
grandes quadros políticos do país.
Hoje, se aceitarmos a tese predominante, alimentada aqui dentro e lá fora, quem vai escolher é o mercado. Assim, teremos eleições autênticas e representações ilegítimas.
Estamos vivendo uma sucessão atípica. Primeiro pela decisão da Justiça
Eleitoral de mudar a regra do jogo
com a desastrada "verticalização", que
tornou um caos a vida partidária. Segundo, porque até agora não se discutiu outra coisa senão se Lula "cria ou
não cria pânico no mercado". O subsecretário do Tesouro dos Estados
Unidos, John Taylor, já alertou: "A
turbulência do Brasil tem causas nas
incertezas políticas em relação às eleições de outubro". Soros foi mais claro:
"O mercado vai impor Serra". E a
oposição submete-se a essa agenda
num círculo de ferro?
Vejam como as coisas mudam. Estive em Buenos Aires no fim do governo Menem. A propaganda avassaladora era "Dez anos que mudaram a
Argentina". E o economista Rudy
Dornbusch, em conferência feita naqueles dias, dizia que o único problema argentino era o Brasil. E Menem
pedia votos nessa competição Brasil
versus Argentina, espalhando o medo
de a Argentina virar Brasil.
Brasil é Brasil; Argentina é Argentina. Devemos nos preocupar é com o
Brasil virar Brasil. Não são as eleições
que nos ameaçam. São os nossos números. Enquanto dependermos de recursos externos para fechar nossas
contas, estaremos vulneráveis. Enquanto a taxa de juros for a terceira
maior do mundo, a de desemprego for
de 20,4%, em São Paulo, o PIB cair
0,6%, o fluxo de capitais externos diminuir; enquanto estivermos disputando a pior distribuição de renda
com a Suazilândia e com a África do
Sul e o nosso risco-país estiver abaixo
apenas do da Argentina, nossa vulnerabilidade não será a eleição.
No mais, temos também estrutura
diferente da da Argentina. O Brasil
tem um sistema de câmbio flexível e
grande parque industrial, sua dívida
interna está em mãos de brasileiros e o
seu sistema político, que, com todos
os defeitos, sempre se une, evitando
crises -prova de responsabilidade-
, é diferente do argentino. Temos a Lei
de Responsabilidade Fiscal e a União
exerce controle sobre as regras que ditam a política financeira dos Estados.
Tudo isso nos assegura que essa discussão é falsa. A verdadeira é sobre os
números do Brasil. Quantas crises enfrentou o governo atual? Foram feitas
por perspectiva de resultado de eleição?
Esse avassalador predomínio do
econômico e da ameaça de pânico
mata o debate político. Inibe a discussão sobre a grave situação social, a injustiça da concentração de renda, o
aumento e o agravamento dos desníveis regionais, a dramática situação do
saneamento básico, da saúde, do desemprego e as alternativas de solução.
Antigamente, os candidatos podiam
fazer promessas, suscitar esperanças,
criar sonhos no coração do povo. Hoje, nem isso está sendo permitido. "Do
mercado, com o mercado e pelo mercado" -é o compromisso de fé das vivandeiras do mercado. Isto é, a eleição
e o povo vão ser mercado, ou melhor,
supermercado.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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