São Paulo, terça-feira, 21 de agosto de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mexe qualquer coisa

EDUARDO GRAEFF


O diabo é que nunca se sabe quando a violência mais ou menos contida e estilizada vai acabar em sangueira


A capa da Folha do sábado, 11 de agosto, me divertiu e depois me comoveu. A foto no alto da página é impagável: um grupo de perueiros protestando na frente da prefeitura, fantasiados de travesti porque "a prefeita só dá atenção aos gays". O verde das grades a que os manifestantes se agarram (não sei se grades cênicas ou de verdade) sobre o lilás das fantasias, a lantejoula das máscaras sobre a cara daqueles homens, tudo dá ao inusitado da cena uma qualidade plástica esquisita.
Uma outra foto logo abaixo nada tinha de original ou de engraçado: soldados israelenses, fuzis em punho, expulsavam manifestantes palestinos da frente de um prédio da OLP tomado por Israel. Nenhum contraste, nenhum brilho, só a desgraça estampada nas roupas, nas caras, nos gestos dos dois lados.
A coincidência do dia e a sacada do editor juntaram cenas que ficam nas antípodas das formas usuais de protesto. A performance dos perueiros é uma versão atualizada e, na minha opinião, melhorada da demonstração pacífica. Geralmente ela tenta chamar a atenção da mídia para impressionar a opinião pública e pressionar o governo, o grande capital ou ambos. Supõe liberdade de expressão, uma certa independência da mídia e permeabilidade do governo e do capital à pressão da opinião pública. No extremo oposto, o confronto físico entre soldados e manifestantes pode ser um prenúncio ou um desdobramento da guerra, como no Oriente Médio, onde o objetivo último não é comover a opinião pública nem pressionar um poder legítimo, mas destruir o inimigo.
A maioria dos protestos mistura essas formas. A boa tradição liberal que consagra a demonstração pacífica também justifica a desobediência contra os abusos de poder. Gandhi extraiu dessa tradição a couraça moral da resistência ao Império Britânico. O Greenpeace cativou a opinião pública mundial com protestos que conseguem bloquear fisicamente a ação de governos ou de empresas graças à fraqueza dos manifestantes e ao testemunho da mídia. Os zapatistas são uma espécie de guerrilha midiática, cujas próprias armas mais funcionam como expressão hiperbólica de protesto. As invasões do nosso MST se inspiram um pouco nesse modelo.
Nas demonstrações antiglobalização, a maioria de manifestantes pacífica convive precariamente com minorias que buscam o confronto. O diabo é que nunca se sabe quando a violência mais ou menos contida e estilizada vai acabar em sangueira, como em Carajás e ainda agora em Gênova. Pior do que esse risco, só mesmo a violência previsível dos confrontos no Oriente Médio, nos Balcãs e nas fronteiras conflagradas do fundamentalismo étnico-religioso, onde tudo sempre acaba mal.
É tocante que um protesto dos perueiros de São Paulo tenha assumido o pólo antibeligerante da mais pura sátira política. E que, de quebra, tenha posto a serviço dessa sátira uma visão talvez preconceituosa, mas positiva, do movimento gay. Os perueiros são homens duros que levam uma vida dura. Na luta pela sobrevivência eles têm protagonizado episódios de violência. Dessa vez, eles foram para a frente da prefeitura, não para ameaçar, mas para embaraçar ou sensibilizar a prefeita.
Que tenham feito isso em trajes drag queen não chega a ser um espanto para as nossas tradições carnavalescas. Que tenham se mirado nos homossexuais para expressar com humor uma demanda de cidadania é, em todo caso, alentador. Sinal de que a tolerância e o requinte cultural transbordam das manifestações da classe média e da esbórnia popular do carnaval para o árduo dia-a-dia das massas.
Não temos ódio racial nem religioso, mas temos desníveis sociais dilacerantes no Brasil. Tomara que os protestos justos e necessários para diminuir esses desníveis fiquem mais para o lado da performance do que para o lado da violência cruenta. Tomara que o desejo de se fazer ouvir pelas autoridades legítimas, perante a opinião pública, sob a proteção da lei, prevaleça sobre a idéia de aniquilar o inimigo ideológico ou de classe. Tomara que a democracia dure e corresponda aos anseios de justiça.
O protesto dos perueiros mexeu comigo, reforçando a esperança de que isso possa acontecer. A democracia avança e se enraíza na sociedade, apesar das desigualdades e da baixa confiança na política. Torço para que a gente consiga ir resolvendo os problemas desse jeito, com luta, mas sem perder o humor. E torço pela prefeita, para que ela não decepcione os gays nem os perueiros.


Eduardo Graeff, 51, sociólogo, é assessor especial da Presidência da República.



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