São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei de Crimes Hediondos deve ser revogada?

SIM

Crimes hediondos e direitos humanos

HÉLIO BICUDO

Os chamados crimes hediondos estão mencionados na Constituição de 1988, curiosamente, no seu título VI, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Mais curioso ainda é que, na qualificação desses delitos, ignorou por completo o constituinte o disposto no título anterior da Carta Política, que define os princípios maiores que regem a República, em que vem contemplado como um dos seus fundamentos o respeito à dignidade da pessoa humana, fazendo, ademais, tábula rasa da advertência constante de seu artigo 5º, inciso III, segundo o qual ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante.
Daí, passou-se à definição, mediante a edição de leis complementares, do que se considera crime hediondo, guardando um alto grau de subjetivismo na descrição de figuras penais, circunstância profligada pelo direito penal moderno. Assim, segundo a legislação brasileira, são crimes hediondos o homicídio praticado em atividade típica de grupos de extermínio e em suas qualificações constantes do par. 2º, do artigo 121, do Código Penal (crimes cometidos por motivo torpe ou fútil, com emprego de meio insidioso ou cruel, à traição ou emboscada ou para assegurar a impunidade de outro crime), o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte ou mediante seqüestro, o estupro, o atentado violento ao pudor e outros mais.
Isso sem considerar que recebem o mesmo tratamento os autores de tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e, por fim, o terrorismo (cf. leis 8.072, de 25/7/90; 8.930, de 7/10/94; e 9.695, de 27/8/98).
Ora, de acordo com o mandamento constitucional, esses crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Isso quer dizer, em última análise, que para os autores desses delitos inexiste o direito à ressocialização, pois nem sequer se admite com relação a eles a progressão da pena estabelecida na legislação pertinente.
Por outro lado, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, recepcionada pelo disposto no artigo 5º, par. 2º, da Constituição Federal dispõe que:
1) toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral;
2) ninguém deve ser submetido a penas ou tratos cruéis, desumanos e degradantes;
3) toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (artigo 5º, 2). Daí se infere que o disposto no artigo 5º, XLVII, letra "b" da Constituição é inconstitucional.
O argumento de que, "se está escrito na Constituição, é constitucional" não se sustenta diante da consideração de que as normas constitucionais não podem contrariar os fundamentos do Estado que os editou, dentre os quais figuram, como se viu, o respeito à dignidade da pessoa humana e, de conseguinte, a prevalência dos direitos humanos (artigos 1º e 4º da Constituição Federal).
Diante desse quadro, não se vê como a Constituição, que conformou o Estado democrático segundo aqueles princípios, possa conter um dispositivo que impõe à pessoa humana tratamento cruel, desumano e degradante. Esses dispositivos devem ser considerados não-escritos. São írritos, pois a sujeição de uma pessoa às penas de um crime considerado hediondo qualifica o tratamento cruel, degradante e desumano, que não é tolerado pela Constituição brasileira e pela Convenção Americana.
Essa classificação delituosa, que contraria tudo o que até agora se escreveu sobre o conceito de delito, surgiu para atender à paranóia, que ainda hoje sobrevive, segundo a qual o delinqüente não merece tratamento humano. É aquela história de que bandido bom é bandido morto.
Resultados práticos, nenhum. Os índices de crimes violentos só têm aumentado a partir de sua conceituação. E, em decorrência, a população carcerária cresceu desmesuradamente, tornando inócuos quaisquer esforços para a melhoria do setor penitenciário.
É por todos esses motivos -outros mais existem- que devemos concordar com o ministro da Justiça e com o presidente do Supremo Tribunal Federal quando propõem o reestudo da questão em nome de uma verdadeira justiça penal.


Hélio Bicudo, 82, advogado e jornalista, é vice-prefeito da cidade de São Paulo. Foi deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98) e presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos).


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