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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei de Crimes Hediondos deve ser revogada?
SIM
Crimes hediondos e direitos humanos
HÉLIO BICUDO
Os chamados crimes hediondos
estão mencionados na Constituição de 1988, curiosamente, no seu título
VI, que trata dos direitos e garantias
fundamentais. Mais curioso ainda é
que, na qualificação desses delitos, ignorou por completo o constituinte o
disposto no título anterior da Carta Política, que define os princípios maiores
que regem a República, em que vem
contemplado como um dos seus fundamentos o respeito à dignidade da pessoa
humana, fazendo, ademais, tábula rasa
da advertência constante de seu artigo
5º, inciso III, segundo o qual ninguém
será submetido a tratamento desumano
ou degradante.
Daí, passou-se à definição, mediante a
edição de leis complementares, do que
se considera crime hediondo, guardando um alto grau de subjetivismo na descrição de figuras penais, circunstância
profligada pelo direito penal moderno.
Assim, segundo a legislação brasileira,
são crimes hediondos o homicídio praticado em atividade típica de grupos de
extermínio e em suas qualificações
constantes do par. 2º, do artigo 121, do
Código Penal (crimes cometidos por
motivo torpe ou fútil, com emprego de
meio insidioso ou cruel, à traição ou
emboscada ou para assegurar a impunidade de outro crime), o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte ou mediante seqüestro, o estupro, o atentado
violento ao pudor e outros mais.
Isso sem considerar que recebem o
mesmo tratamento os autores de tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e,
por fim, o terrorismo (cf. leis 8.072, de
25/7/90; 8.930, de 7/10/94; e 9.695, de
27/8/98).
Ora, de acordo com o mandamento
constitucional, esses crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Isso quer dizer, em última análise,
que para os autores desses delitos inexiste o direito à ressocialização, pois
nem sequer se admite com relação a eles
a progressão da pena estabelecida na legislação pertinente.
Por outro lado, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, recepcionada pelo disposto no artigo 5º, par.
2º, da Constituição Federal dispõe que:
1) toda pessoa tem o direito de que se
respeite sua integridade física, psíquica
e moral;
2) ninguém deve ser submetido a penas ou tratos cruéis, desumanos e degradantes;
3) toda pessoa privada de liberdade
deve ser tratada com o respeito devido à
dignidade inerente ao ser humano (artigo 5º, 2). Daí se infere que o disposto no
artigo 5º, XLVII, letra "b" da Constituição é inconstitucional.
O argumento de que, "se está escrito
na Constituição, é constitucional" não
se sustenta diante da consideração de
que as normas constitucionais não podem contrariar os fundamentos do Estado que os editou, dentre os quais figuram, como se viu, o respeito à dignidade
da pessoa humana e, de conseguinte, a
prevalência dos direitos humanos (artigos 1º e 4º da Constituição Federal).
Diante desse quadro, não se vê como a
Constituição, que conformou o Estado
democrático segundo aqueles princípios, possa conter um dispositivo que
impõe à pessoa humana tratamento
cruel, desumano e degradante. Esses
dispositivos devem ser considerados
não-escritos. São írritos, pois a sujeição
de uma pessoa às penas de um crime
considerado hediondo qualifica o tratamento cruel, degradante e desumano,
que não é tolerado pela Constituição
brasileira e pela Convenção Americana.
Essa classificação delituosa, que contraria tudo o que até agora se escreveu
sobre o conceito de delito, surgiu para
atender à paranóia, que ainda hoje sobrevive, segundo a qual o delinqüente
não merece tratamento humano. É
aquela história de que bandido bom é
bandido morto.
Resultados práticos, nenhum. Os índices de crimes violentos só têm aumentado a partir de sua conceituação.
E, em decorrência, a população carcerária cresceu desmesuradamente, tornando inócuos quaisquer esforços para a
melhoria do setor penitenciário.
É por todos esses motivos -outros
mais existem- que devemos concordar com o ministro da Justiça e com o
presidente do Supremo Tribunal Federal quando propõem o reestudo da
questão em nome de uma verdadeira
justiça penal.
Hélio Bicudo, 82, advogado e jornalista, é vice-prefeito da cidade de São Paulo. Foi deputado
federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98) e presidente da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, da OEA (Organização dos Estados
Americanos).
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