São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei de Crimes Hediondos deve ser revogada?

NÃO

Necessária adequação constitucional

LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO

De repente, o Brasil passou a discutir, novamente, a revogação da Lei de Crimes Hediondos. Pondero: é o caso de revogação pura e simples ou da alteração dessa lei, adequando-a constitucionalmente?
Penso que a simples revogação da Lei de Crimes Hediondos (lei nš 8.072), que estipula o cumprimento integral da pena em regime fechado para uma série de crimes de alta lesividade, como homicídio qualificado, tráfico de drogas, tortura, extorsão mediante seqüestro, estupro etc., poderia deixar um vácuo na legislação brasileira, com conseqüências imprevisíveis, uma vez que todos os condenados que já cumpriram um sexto das suas penas podem requerer regime semi-aberto, sendo muitos de altíssima periculosidade. A lei 8.072/90 tem natureza processual e também penal, e sua simples revogação teria efeito retroativo no âmbito penal, alterando e alcançando processos e condenações do passado.
Na verdade, estamos diante de uma lei infeliz, pois, nos últimos 14 anos de sua vigência, não conseguiu reduzir os crimes graves que contempla. Certamente, uma lei isolada não possui o poder de fazer recuar os índices de criminalidade, porque a retração do crime depende de uma série de fatores, alguns de ordem legal, outros de ordem social e política, além daqueles que impliquem a eliminação da impunidade, uma vez que somente a certeza da punição vem conseguindo inibir a prática delituosa em todo o mundo.
Um dos argumentos dos defensores da simples extinção da lei é o de que a revogação contribuiria para reduzir o déficit nas prisões brasileiras, hoje estimado em 100 mil vagas. Acredito que isso não pode motivar a extinção da lei, mas sim a sua alteração. A solução para a superpopulação carcerária brasileira e para um sistema desprovido de humanidade e capacidade de reabilitar está nas penas alternativas, com a expansão de suas modalidades e de sua aplicação, ainda tímida no Brasil, quando nos Estados Unidos já atinge 80% dos processos criminais. A prisão deve ficar restrita aos delinqüentes perigosos, enquanto poderia se combater a impunidade aplicando-se as penas alternativas para os demais.
Na verdade, o grande problema da Lei de Crimes Hediondos é de ordem constitucional, por negar a Carta Magna. Por exemplo, quando impede a concessão de liberdade provisória para os que foram presos em flagrante delito, incursos na prática desse tipo de crime. Ora, se a Constituição Federal vigente consagra o princípio da presunção de inocência -segundo o qual todos somos inocentes, até a sentença penal condenatória definitiva-, negar a liberdade, determinando a prisão para quem responde a processo, torna-se a negação de tal princípio.
No lugar de revogar a Lei de Crimes Hediondos, melhor seria a sua adequação à Constituição vigente. Para tanto, a OAB-SP espera dar sua contribuição através da criação de uma comissão de estudos, presidida pelo jurista e professor titular da USP Vicente Grecco Filho.
Um aspecto importante desse estudo é corrigir as distorções entre delitos e penas. Um exemplo disso é o crime de tráfico de entorpecente, considerado hediondo e que, na sua lei própria, não faz distinção entre um megatraficante profissional, que introduz no país uma tonelada de cocaína, e o jovem que entrega um cigarro de maconha ao seu colega. Pela lei, estamos diante de dois crimes hediondos, sem direito a liberdade provisória, sem fiança, sem opção de responder ao processo em liberdade, o que constitui uma injustiça.
Diante desses pontos, em vez de propor a simples revogação da Lei de Crimes Hediondos, o caminho mais adequado nos parece a reforma, afastando as inconstitucionalidades.


Luiz Flávio Borges D'Urso, 44, advogado criminalista, mestre e doutor em direito pela USP, é o presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil.


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