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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei de Crimes Hediondos deve ser revogada?
NÃO
Necessária adequação constitucional
LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO
De repente, o Brasil passou a discutir, novamente, a revogação da
Lei de Crimes Hediondos. Pondero: é o
caso de revogação pura e simples ou da
alteração dessa lei, adequando-a constitucionalmente?
Penso que a simples revogação da Lei
de Crimes Hediondos (lei nš 8.072), que
estipula o cumprimento integral da pena em regime fechado para uma série de
crimes de alta lesividade, como homicídio qualificado, tráfico de drogas, tortura, extorsão mediante seqüestro, estupro etc., poderia deixar um vácuo na legislação brasileira, com conseqüências
imprevisíveis, uma vez que todos os
condenados que já cumpriram um sexto das suas penas podem requerer regime semi-aberto, sendo muitos de altíssima periculosidade. A lei 8.072/90 tem
natureza processual e também penal, e
sua simples revogação teria efeito retroativo no âmbito penal, alterando e alcançando processos e condenações do
passado.
Na verdade, estamos diante de uma lei
infeliz, pois, nos últimos 14 anos de sua
vigência, não conseguiu reduzir os crimes graves que contempla. Certamente,
uma lei isolada não possui o poder de
fazer recuar os índices de criminalidade,
porque a retração do crime depende de
uma série de fatores, alguns de ordem
legal, outros de ordem social e política,
além daqueles que impliquem a eliminação da impunidade, uma vez que somente a certeza da punição vem conseguindo inibir a prática delituosa em todo o mundo.
Um dos argumentos dos defensores
da simples extinção da lei é o de que a
revogação contribuiria para reduzir o
déficit nas prisões brasileiras, hoje estimado em 100 mil vagas. Acredito que isso não pode motivar a extinção da lei,
mas sim a sua alteração. A solução para
a superpopulação carcerária brasileira e
para um sistema desprovido de humanidade e capacidade de reabilitar está
nas penas alternativas, com a expansão
de suas modalidades e de sua aplicação,
ainda tímida no Brasil, quando nos Estados Unidos já atinge 80% dos processos criminais. A prisão deve ficar restrita aos delinqüentes perigosos, enquanto
poderia se combater a impunidade aplicando-se as penas alternativas para os
demais.
Na verdade, o grande problema da Lei
de Crimes Hediondos é de ordem constitucional, por negar a Carta Magna. Por
exemplo, quando impede a concessão
de liberdade provisória para os que foram presos em flagrante delito, incursos
na prática desse tipo de crime. Ora, se a
Constituição Federal vigente consagra o
princípio da presunção de inocência
-segundo o qual todos somos inocentes, até a sentença penal condenatória
definitiva-, negar a liberdade, determinando a prisão para quem responde
a processo, torna-se a negação de tal
princípio.
No lugar de revogar a Lei de Crimes
Hediondos, melhor seria a sua adequação à Constituição vigente. Para tanto, a
OAB-SP espera dar sua contribuição
através da criação de uma comissão de
estudos, presidida pelo jurista e professor titular da USP Vicente Grecco Filho.
Um aspecto importante desse estudo
é corrigir as distorções entre delitos e
penas. Um exemplo disso é o crime de
tráfico de entorpecente, considerado
hediondo e que, na sua lei própria, não
faz distinção entre um megatraficante
profissional, que introduz no país uma
tonelada de cocaína, e o jovem que entrega um cigarro de maconha ao seu colega. Pela lei, estamos diante de dois crimes hediondos, sem direito a liberdade
provisória, sem fiança, sem opção de
responder ao processo em liberdade, o
que constitui uma injustiça.
Diante desses pontos, em vez de propor a simples revogação da Lei de Crimes Hediondos, o caminho mais adequado nos parece a reforma, afastando
as inconstitucionalidades.
Luiz Flávio Borges D'Urso, 44, advogado criminalista, mestre e doutor em direito pela USP, é o
presidente da seccional paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil.
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