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Agulhas de Hiroshima
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Pisei de mau jeito
num desses caminhos da vida e peguei
uma dor no tornozelo que não passava com os recursos da medicina ocidental. Aconselharam-me a alternativa que sempre se busca nessas horas:
os complicados macetes da medicina
oriental. Daí que adentrou em minha
sala um japonês simpático, com o simpaticíssimo nome de Tada.
Ele e suas agulhas. Tada espetou-as
não exatamente no local avariado,
mas em quase todo o corpo. Identificou problemas no baço -e eu nem
sabia que tinha baço dentro de mim.
Para amenizar o agulheiro em que
me transformei, falou de sua vida e de
sua quase morte. Morava em Hiroshima, tinha 6 anos quando viu um sol
nascer do chão e matar todo mundo
em volta.
Tada não sabe nem quer saber porque sobreviveu -nem perde tempo
em pensar nisso. Todos os anos, em
agosto, faz silêncio de um minuto para lembrar o que viu e não entendeu
-e não entende até hoje.
Seu vocabulário em português é pobre -na realidade, é paupérrimo.
Não usa verbos, usa apenas substantivos. Descreve aquela manhã de
agosto de 1945 misturando alguns
desses substantivos: tragédia - tristeza
- política. Para ele, política não é apenas companheira da tragédia e da
tristeza. Mais do que um sinônimo, é
uma causa.
Esqueci de dizer que rosna algumas
interjeições, como ""ai", ""ui", ""oooh" e
uma variante dessa última, que é
""iiih". O resultado é que o meu diálogo com ele corre naturalmente, pois
insisto também nas mesmas interjeições, sobretudo na primeira.
Diz ele que sua pele ainda tem vestígios daquela manhã. Suas agulhas
também. De maneira que me sinto,
de certa forma, um sobrevivente de
Hiroshima. Passei a entender porque
não gosto de política. E a confundo
com tragédia e tristeza.
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