São Paulo, Sábado, 21 de Agosto de 1999
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Agulhas de Hiroshima

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Pisei de mau jeito num desses caminhos da vida e peguei uma dor no tornozelo que não passava com os recursos da medicina ocidental. Aconselharam-me a alternativa que sempre se busca nessas horas: os complicados macetes da medicina oriental. Daí que adentrou em minha sala um japonês simpático, com o simpaticíssimo nome de Tada.
Ele e suas agulhas. Tada espetou-as não exatamente no local avariado, mas em quase todo o corpo. Identificou problemas no baço -e eu nem sabia que tinha baço dentro de mim. Para amenizar o agulheiro em que me transformei, falou de sua vida e de sua quase morte. Morava em Hiroshima, tinha 6 anos quando viu um sol nascer do chão e matar todo mundo em volta.
Tada não sabe nem quer saber porque sobreviveu -nem perde tempo em pensar nisso. Todos os anos, em agosto, faz silêncio de um minuto para lembrar o que viu e não entendeu -e não entende até hoje.
Seu vocabulário em português é pobre -na realidade, é paupérrimo. Não usa verbos, usa apenas substantivos. Descreve aquela manhã de agosto de 1945 misturando alguns desses substantivos: tragédia - tristeza - política. Para ele, política não é apenas companheira da tragédia e da tristeza. Mais do que um sinônimo, é uma causa.
Esqueci de dizer que rosna algumas interjeições, como ""ai", ""ui", ""oooh" e uma variante dessa última, que é ""iiih". O resultado é que o meu diálogo com ele corre naturalmente, pois insisto também nas mesmas interjeições, sobretudo na primeira.
Diz ele que sua pele ainda tem vestígios daquela manhã. Suas agulhas também. De maneira que me sinto, de certa forma, um sobrevivente de Hiroshima. Passei a entender porque não gosto de política. E a confundo com tragédia e tristeza.


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