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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Farsa e tragédia
Uma ministra viaja para Buenos
Aires a custo do erário. E arruma
-dizem que às pressas, para justificar
a viagem custeada - reunião com sua
contraparte argentina. A ministra,
mulher negra de origem pobre e portanto vítima fácil, exerce sem brilho,
sem diretriz e sem dinheiro cargo para
o qual foi irresponsavelmente escolhida por presidente mais atento a calar
bocas do que a desempenhar tarefas.
Zum-zum no país. Com ar de superioridade moral, o presidente compungido defende a ministra, mas não
muito. O mesmo presidente que, durante uma das viagens incessantes que
tanto prazer lhe dão, acaba de declarar
que ser presidente "é difícil mas é gostoso". O mesmo que não disfarça sua
euforia com as prerrogativas materiais
do poder. Entre os que condenam a
alegada transgressão da ministra primam os políticos -como, por exemplo, os congressistas que se divertem
cada ano em Nova York a pretexto de
emprestar suas luzes à ONU.
Atrás da ilegalidade constrangedora
porém menor que haja cometido a
ministra desastrada, perpetra-se em
silêncio -sem reação e sem comentário -crime, esse sim vasto na dimensão e violento nos efeitos, contra o povo brasileiro. Atrás da farsa dos aproveitamentos pessoais desenrola-se a
tragédia do abraço entre o poder e o
dinheiro, entre o governo do Brasil e a
plutocracia brasileira.
O governo do PT não inventou o sistema pelo qual grandes empresários
tratam de colocar políticos no bolso
enquanto políticos cortejam e apertam grandes empresários. Há, porém,
por que temer que o governo do PT leve esse regime a grau de fortalecimento nunca antes visto (não é à toa que os
plutocratas tratam com temor reverencial certo tesoureiro de partido político). O pretexto será sempre o mesmo: realismo político a serviço de hegemonia partidária. Dinheiro para
partido em troca de favorecimento de
empresário, dirão, não é roubo; é regra do jogo.
Acabar com isso não é mistério. Financiar campanhas eleitorais com dinheiro público. Obrigar candidato a
falar na televisão diante de fundo
branco, sem truque de marqueteiro
ganancioso. Deixar falido falir, impondo o capitalismo aos capitalistas.
Parar de redistribuir, por meio dos
bancos públicos, recursos de quem
trabalha muito para bolso de quem se
relaciona bem. Profissionalizar a gestão dos fundos de pensão e afastar os
negocistas que pululam em sua volta.
Abandonar a prática do grampo telefônico, destinada a municiar com bisbilhotagem o pacto entre o poder e o
dinheiro e a intimidar os insubmissos.
Exigir platéia e transcrição para encontro entre governante e empresário.
Acender, enfim, as luzes.
É natural que o brasileiro, preocupado com o emprego e o salário e indignado com as minimaracutaias narradas pela mídia, não pense nisso. Sem
divórcio entre o poder e o dinheiro,
entretanto, não mudaremos o rumo
do país.
A melhor maneira de levantar o jugo
que pesa sobre nossa vida republicana
é abrir novo caminho político para o
Brasil. Agora quando o presidente,
ainda bafejado pela empatia das multidões, já vislumbra sua reeleição para
cumprir o que seria o quarto mandato
de seu antecessor, pode parecer quixotesco preparar alternativa progressista que o derrote em 2006. Alternativa que mostre como botar o Brasil para trabalhar e produzir e como ter governo que não esteja no bolso de alguém. Melhor, porém, começar assim
mesmo, do quase nada, sem ilusões
mas também sem esmorecimento,
confiantes na justiça de nossa causa e
na ressurreição de nossa esperança.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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