UOL




São Paulo, terça-feira, 21 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Farsa e tragédia

Uma ministra viaja para Buenos Aires a custo do erário. E arruma -dizem que às pressas, para justificar a viagem custeada - reunião com sua contraparte argentina. A ministra, mulher negra de origem pobre e portanto vítima fácil, exerce sem brilho, sem diretriz e sem dinheiro cargo para o qual foi irresponsavelmente escolhida por presidente mais atento a calar bocas do que a desempenhar tarefas.
Zum-zum no país. Com ar de superioridade moral, o presidente compungido defende a ministra, mas não muito. O mesmo presidente que, durante uma das viagens incessantes que tanto prazer lhe dão, acaba de declarar que ser presidente "é difícil mas é gostoso". O mesmo que não disfarça sua euforia com as prerrogativas materiais do poder. Entre os que condenam a alegada transgressão da ministra primam os políticos -como, por exemplo, os congressistas que se divertem cada ano em Nova York a pretexto de emprestar suas luzes à ONU.
Atrás da ilegalidade constrangedora porém menor que haja cometido a ministra desastrada, perpetra-se em silêncio -sem reação e sem comentário -crime, esse sim vasto na dimensão e violento nos efeitos, contra o povo brasileiro. Atrás da farsa dos aproveitamentos pessoais desenrola-se a tragédia do abraço entre o poder e o dinheiro, entre o governo do Brasil e a plutocracia brasileira.
O governo do PT não inventou o sistema pelo qual grandes empresários tratam de colocar políticos no bolso enquanto políticos cortejam e apertam grandes empresários. Há, porém, por que temer que o governo do PT leve esse regime a grau de fortalecimento nunca antes visto (não é à toa que os plutocratas tratam com temor reverencial certo tesoureiro de partido político). O pretexto será sempre o mesmo: realismo político a serviço de hegemonia partidária. Dinheiro para partido em troca de favorecimento de empresário, dirão, não é roubo; é regra do jogo.
Acabar com isso não é mistério. Financiar campanhas eleitorais com dinheiro público. Obrigar candidato a falar na televisão diante de fundo branco, sem truque de marqueteiro ganancioso. Deixar falido falir, impondo o capitalismo aos capitalistas. Parar de redistribuir, por meio dos bancos públicos, recursos de quem trabalha muito para bolso de quem se relaciona bem. Profissionalizar a gestão dos fundos de pensão e afastar os negocistas que pululam em sua volta. Abandonar a prática do grampo telefônico, destinada a municiar com bisbilhotagem o pacto entre o poder e o dinheiro e a intimidar os insubmissos. Exigir platéia e transcrição para encontro entre governante e empresário. Acender, enfim, as luzes.
É natural que o brasileiro, preocupado com o emprego e o salário e indignado com as minimaracutaias narradas pela mídia, não pense nisso. Sem divórcio entre o poder e o dinheiro, entretanto, não mudaremos o rumo do país.
A melhor maneira de levantar o jugo que pesa sobre nossa vida republicana é abrir novo caminho político para o Brasil. Agora quando o presidente, ainda bafejado pela empatia das multidões, já vislumbra sua reeleição para cumprir o que seria o quarto mandato de seu antecessor, pode parecer quixotesco preparar alternativa progressista que o derrote em 2006. Alternativa que mostre como botar o Brasil para trabalhar e produzir e como ter governo que não esteja no bolso de alguém. Melhor, porém, começar assim mesmo, do quase nada, sem ilusões mas também sem esmorecimento, confiantes na justiça de nossa causa e na ressurreição de nossa esperança.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Anedota de Bocage
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.