São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Hegemonias

Por maiores que sejam as diferenças, parece haver um traço em comum nas transições políticas que estão ocorrendo no Brasil e na Turquia. País de ampla maioria muçulmana, a Turquia adotou o Estado laico e a separação entre política e religião no começo do século 20. Tem sido tradicional aliada do Ocidente desde a Segunda Guerra (1939-1945).
As eleições de 3 de novembro deram o governo a um partido islâmico, o AKP, que venceu após sofrer reformulação comparável à do PT. Sigla para Partido da Justiça e do Desenvolvimento, o AKP comprometeu-se a respeitar os compromissos internacionais da Turquia e as normas do Estado laico, abrindo mão de implantar a "sharia", as leis religiosas do Islã.
De uma perspectiva liberal, a leitura é a de que normas e valores ligados ao capitalismo liberal-democrático estão se universalizando. Grupos situados mais à margem no espectro político se voltam para o centro, renunciam a suas pretensões mais radicais e, por isso mesmo, chegam ao poder pelo voto, e não pelas armas.
De um ponto de vista de esquerda, a evolução desses partidos faz lembrar o pensamento de Antonio Gramsci, o líder comunista italiano que escreveu enquanto preso pela ditadura de Mussolini. Os escritos de Gramsci tiveram influência na esquerda brasileira, sobretudo nos anos 70, quando conceitos como "sociedade civil" e "hegemonia", que ele usou, entraram para o jargão local.
Ao contrário das expectativas de Marx e de seus seguidores, a revolução não acontecera nos países mais desenvolvidos. Na época de Gramsci ela só fora vitoriosa na Rússia -e, mais tarde, em outros países atrasados da Ásia e da África. Mesmo onde venceu, ela deu origem a uma ditadura burocrática, que na China se prolonga até hoje.
Em síntese brutal, a concepção de Gramsci era que, em países mais desenvolvidos, não basta tomar o governo e controlar o exército. Seria preciso antes formar um "bloco histórico" de alianças que permitisse conquistar a "hegemonia" no âmbito da "sociedade civil", as organizações de poder que estão fora da órbita do Estado.
Sem esse lento e persistente trabalho pelo qual a conquista do Estado aconteceria, por assim dizer, de fora para dentro, a revolução estaria condenada à derrota (como na Alemanha) ou a se converter em Estado policial (como na Rússia, embora Gramsci, que morreu em 1937, não tenha rompido com o regime comunista).
A dúvida sempre foi saber se, depois desse processo, ainda haveria revolução. O eurocomunismo, em voga nos anos 70 e fruto das concepções de Gramsci, significou a conversão dos PCs europeus à social-democracia. O PT parece encaminhado em direção semelhante. Obteve, enfim, a "hegemonia" ou simplesmente aderiu à "hegemonia" anterior?


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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