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Cuidado público
ELISA BRACHER
Não me sinto desrespeitada pelo fato de a nova primeira-dama ter um gosto diverso do meu. Mas não se trata assim uma obra de arte
EM FINS de 2002, a pedido de
Ruth Cardoso, fiz uma escultura
que foi colocada no Palácio da
Alvorada. A idéia da então primeira-dama do Brasil era formar um conjunto de obras que desse visibilidade a
um setor da produção visual mais
preocupado com os espaços públicos
e que dificilmente encontra acolhida.
Como o projeto não contava com
dotação pública, minha galerista, Raquel Arnaud, cedeu a escultura em comodato -portanto, sem contrapartida em dinheiro governamental.
No início de 2003, o Gabinete de
Arte Raquel Arnaud recebeu um telefonema da secretária de dona Marisa,
a nova primeira-dama, pedindo que a
obra fosse retirada imediatamente do
palácio. O gabinete começou a procurar, primeiro em Brasília, algum lugar
em que a escultura pudesse ficar, conciliando as dificuldades práticas do
retorno a São Paulo com o desejo de
mantê-la acessível ao público.
Algum tempo depois, o gabinete recebeu outro telefonema, este dizendo
que a partir do mês seguinte teria que
pagar o aluguel pelo depósito que
guardava a obra. Insisti com Raquel
Arnaud que isso era demais.
Uma mudança no pessoal que trabalhava no palácio e uma mudança na
equipe da galeria tornaram o processo de retirada ainda mais lento, com
erros de parte a parte.
No começo deste ano, a Secretaria
da Cultura de São Paulo aceitou a
doação da obra, que seria instalada no
parque do Trote, na Vila Maria.
Na última quinta-feira, a escultura
chegou a São Paulo. Seu estado de deterioração era muito grave. Os parafusos que unem as toras, elementos
decisivos para a organização do trabalho, foram arrancados com tal violência que chegaram a se partir.
As toras
de madeira, pelo contato com a umidade, apodreceram em muitos lugares estruturalmente decisivos.
Não foi possível instalar a obra.
Não é a primeira vez que tenho uma
escultura retirada de um lugar público. Da primeira vez, no largo do Arouche, houve manifestações públicas
contra e a favor da retirada. O DPH
decidiu que a obra seria transferida
para o Centro Cultural Vergueiro.
Não cabe aqui discutir a propriedade
da decisão. O que importa é que foram
consideradas as condições de sua
conservação e visibilidade.
Parece-me infrutífero atribuir esse
desmazelo apenas ao capricho de alguém que, com ou sem razão, se recusa a conviver com uma escultura que
o desagrada. Compromissos de governo estão acima de gostos pessoais. E,
no mínimo, isso exigiria zelo por parte daqueles que têm por objetivo máximo zelar pelo bem público, obra de
arte ou leis.
Em relação ao caso em questão, não
importa nem mesmo discutir os méritos ou deméritos da escultura em foco. O fato é que não se trata assim uma
obra de arte, goste-se dela ou não, sobretudo quando foi tomada sob a tutela do Estado.
Não me sinto desrespeitada pelo fato de a nova primeira-dama ter um
gosto diverso do meu. A escultura estava, afinal, em sua casa, ainda que
provisória. O que não me parece aceitável é o tratamento que veio a ser dado a um trabalho que, como todo trabalho de arte, traz em si elementos de
polêmica e discordância.
E se se tratasse de uma lei? Quais as
conseqüências desse desleixo? Cultural, material ou institucional, um bem
público supõe uma consideração sem
a qual a continuidade legal de um país
é posta em xeque.
Quando a arte passa a ser tratada
como uma coisa descartável, que, por
sua insignificância, não diz respeito à
República, me pergunto se não chegamos às raias de um regime para o qual
vale só aquilo tristemente livre de
qualquer polêmica ou ambigüidade.
As esculturas de grande porte são
públicas por natureza e deveriam estar acessíveis a todos. As coleções públicas poderiam ter acervos mais
completos, mas há sempre o medo,
justificado, de que as obras possam se
deteriorar por descuido.
As esculturas cumprem seu papel
no momento em que levantam questões importantes sobre os espaços e
têm a possibilidade de ser um "embrião de reflexão sobre a natureza do
espaço público". Este é facilmente tomado como privado. As pessoas se
apropriam desses espaços públicos
como se fossem delas.
No caso dessa escultura, a obra era
um bem público -o palácio também,
embora residência oficial.
De toda maneira, os bens públicos
não devem ser destruídos de modo
nenhum, muito menos por desleixo.
Mas temo que a destruição dessa
obra faça parte de uma lógica nacional, histórica, não apenas deste governo, mas eterna, em que tudo vai se deteriorando: rios, matas, hospitais, escolas etc.: todos bens públicos. Acima
de tudo, uma população abandonada.
ELISA BRACHER, 42, é escultora e educadora. Tem dois livros publicados: "Madeira sobre Madeira", com texto de
Rodrigo Naves, e "Maneira Branca", com textos de Lorenzo Mammì e Sônia Salzstein.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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