São Paulo, sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

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JOSÉ SARNEY

Os odores do Haiti

O HAITI É UM país sofrido. Nem por isso sua história é menos heroica e exemplo de momentos de glória. Alguns que podem ser inseridos na grande lista da construção da liberdade no mundo.
Foi o Haiti o primeiro país em que os pretos se rebelaram contra a escravidão, com Louverture e Dessalines, e eles próprios decretaram seu direito de viver livremente ao fundar, em 1804, a primeira República negra do mundo.
Isso custou-lhe uma dívida de sofrimento que atravessou séculos e até hoje é tida como a grande pedra na construção de sua pobreza. A revanche dos países coloniais foi brutal.
Li há alguns anos um livro que teve grande sucesso. Foi "Colapso", de Jared Diamond, que tenta explicar a riqueza e a pobreza de alguns países. Um dos capítulos trata do Haiti e da República Dominicana.
Ele demonstra que a exploração predatória da cana a partir do século 16 devastou as florestas do Haiti, destruindo seu solo, rios, fertilidade e criando todos os ingredientes de uma pobreza impossível de ser banida. Já a República Dominicana, ao seu lado, conservou suas florestas e direcionou sua economia para outros rumos.
E o Haiti passou a ser um exemplo de exploração, de desertificação, de miséria e de problemas políticos, submetido à dominação espanhola, francesa, americana -e atualmente não se sabe quem, porque nem seu povo tem condições de dominá-lo.
Para dar um exemplo de sua exploração, citemos o fato de que o Haiti era responsável por um terço da receita francesa no século 18 e, depois da revolta dos escravos, teve de pagar uma indenização que, transformada em valores de hoje, seria de 22 bilhões.
Assim construiu-se sua inviabilidade. Não tem árvores, não tem nenhuma condição de sobrevivência. Pois é nesse lugar, o mais pobre entre os pobres, que o destino escolhe para a maior tragédia das Américas. Todos se sentem culpados e todos querem ajudar. Mas ninguém sabe como fazer ou começar.
Faltam água, alimentos e todas as condições mínimas para viver. Mas os que lá estão, na mais humanitária das tarefas, falam sobretudo nos odores do Haiti. O cheiro da pobreza, do lixo, dos cadáveres insepultos, inchados e em decomposição -a mistura de todos esses odores, o odor da morte. É esse que asfixia todos os que ali estão.
A cidade é toda desespero. Mas é nesse ambiente que repórteres relatam o pedido de uma mãe com dois filhos: que lhe ajudem a sepultar o marido e os outros filhos que estão mortos na casa desmoronada.
Pergunta-se a uma das meninas sobreviventes em que está pensando. Ela responde: "Em voltar ao colégio". É que o cheiro da morte não mata o perfume da esperança, que não morre nunca.

jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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