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JOSÉ SARNEY
Os odores do Haiti
O HAITI É UM país sofrido.
Nem por isso sua história é
menos heroica e exemplo de
momentos de glória. Alguns que
podem ser inseridos na grande lista da construção da liberdade no
mundo.
Foi o Haiti o primeiro país
em que os pretos se rebelaram contra a escravidão, com Louverture e
Dessalines, e eles próprios decretaram seu direito de viver livremente
ao fundar, em 1804, a primeira República negra do mundo.
Isso custou-lhe uma dívida de sofrimento
que atravessou séculos e até hoje é
tida como a grande pedra na construção de sua pobreza. A revanche
dos países coloniais foi brutal.
Li há alguns anos um livro que
teve grande sucesso. Foi "Colapso",
de Jared Diamond, que tenta explicar a riqueza e a pobreza de alguns
países. Um dos capítulos trata do
Haiti e da República Dominicana.
Ele demonstra que a exploração
predatória da cana a partir do século 16 devastou as florestas do Haiti,
destruindo seu solo, rios, fertilidade e criando todos os ingredientes
de uma pobreza impossível de ser
banida. Já a República Dominicana, ao seu lado, conservou suas florestas e direcionou sua economia
para outros rumos.
E o Haiti passou a ser um exemplo de exploração, de desertificação, de miséria e de problemas políticos, submetido à dominação espanhola, francesa, americana -e
atualmente não se sabe quem, porque nem seu povo tem condições
de dominá-lo.
Para dar um exemplo de sua exploração, citemos o fato de que o
Haiti era responsável por um terço
da receita francesa no século 18 e,
depois da revolta dos escravos, teve
de pagar uma indenização que,
transformada em valores de hoje,
seria de 22 bilhões.
Assim construiu-se sua inviabilidade. Não tem
árvores, não tem nenhuma condição de sobrevivência. Pois é nesse
lugar, o mais pobre entre os pobres, que o destino escolhe para a
maior tragédia das Américas. Todos se sentem culpados e todos
querem ajudar. Mas ninguém sabe
como fazer ou começar.
Faltam
água, alimentos e todas as condições mínimas para viver.
Mas os que lá estão, na mais humanitária das tarefas, falam sobretudo nos odores do Haiti. O cheiro
da pobreza, do lixo, dos cadáveres
insepultos, inchados e em decomposição -a mistura de todos esses
odores, o odor da morte. É esse que
asfixia todos os que ali estão.
A cidade é toda desespero. Mas é nesse
ambiente que repórteres relatam o
pedido de uma mãe com dois filhos: que lhe ajudem a sepultar o
marido e os outros filhos que estão
mortos na casa desmoronada.
Pergunta-se a uma das meninas
sobreviventes em que está pensando. Ela responde: "Em voltar ao colégio". É que o cheiro da morte não
mata o perfume da esperança, que
não morre nunca.
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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