São Paulo, terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Novo consenso alternativo

Algo de surpreendente ocorre, ao mesmo tempo, nas universidades do Primeiro Mundo e em muitas das capitais dos principais países em desenvolvimento. Até agora prevaleceu, entre os próprios opositores do Consenso de Washington, o ideário neoliberal, a impressão de não haver alternativa clara e abrangente. O único caminho viável para os países que quisessem resistir seria juntar pedaços da suposta ortodoxia com inovações inspiradas pelas circunstâncias de cada nação. Numa luta desigual, heresias locais enfrentariam ortodoxia universal. Pela primeira vez, impõe-se a convicção de que existe outro rumo, sim, e que seus componentes não se reduzem a amontoado de adaptações locais.
O primeiro elemento desse caminho diferente é a constatação de que há de fato muito a ganhar com virada em direção à economia de mercado. Só que não é o mercado como se entende no neoliberalismo, a cópia das instituições econômicas estabelecidas nos países ricos. É o mercado no sentido amplo, o de descentralização do acesso às oportunidades e aos recursos da produção. Cresce mais e melhor quem dá mais vez à energia e à ambição de mais gente, sem impor privilégios ou planilha.
O segundo aspecto dessa estratégia é ser audacioso na maneira de dar realidade ao mercado, inovando em instituições e em práticas. É preciso combinar ativismo governamental, destinado a contrabalançar as inibições resultantes do atraso, com radicalização da concorrência: excitação do espírito empreendedor tem de conviver com mecanismo competitivo de seleção. É preciso dar primazia aos interesses da produção e do trabalho: enfoque em qualificação do trabalhador, em desenvolvimento ou transferência de tecnologia e em barateamento do custo do capital. É preciso garantir, por políticas salariais, creditícias e tecnológicas, que os benefícios dos ganhos de produtividade, alcançados em setores mais avançados da economia, se difundam por toda a economia: base para mercado de consumo em massa.
A terceira parte dessa trajetória é assegurar as condições para participar ativamente da economia mundial em termos compatíveis com essas orientações nacionais em vez de entender passivamente globalização como rendição. Um requisito -defensivo- é tratar com cautela os movimentos do dinheiro, não hesitando em lançar mão, quando conveniente, de controles seletivos e temporários. Outra exigência -afirmativa- é ampliar o leque de maneiras de canalizar poupança de longo prazo para investimento de longo prazo. Nenhum país enriquece com o dinheiro dos outros se não souber, antes, mobilizar seus próprios recursos.
Não descrevo minhas idéias; apenas resumo o consenso alternativo que emerge, mundo afora, em centros de pensamento e em centros de poder. Tudo muito distante ainda das preocupações cotidianas dos brasileiros. Tudo a exigir desdobramento em propostas e políticas que enfrentem o que há de singular em nossas realidades. Tudo, porém, imensamente importante em país como o nosso, onde os quadros dirigentes ou pensantes continuam a resistir a iniciativas que não tenham sido antes abalizadas pela experiência ou pela doutrinação estrangeiras.
Que o hábito da cópia sirva agora à causa da imaginação e da rebeldia.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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