São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

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Votos em reais

FILIPE CAMPANTE

Um sistema fundado em contribuições de pessoas físicas propõe uma saída entre a promiscuidade atual e o financiamento público

QUASE 37 MILHÕES de eleitores norte-americanos já se manifestaram, com seus votos durante as prévias, sobre aqueles que pretendem ou pretenderam disputar a Presidência dos EUA. O próximo presidente terá passado pelo crivo desses e de mais muitos outros milhões de cidadãos antes mesmo da eleição propriamente dita. Mais ainda, como salientado em recente reportagem de Fernando Rodrigues nesta Folha ("Pequenas doações batem recorde neste ano", Mundo, 10/2), centenas de milhares de eleitores terão contribuído para o financiamento da campanha que o terá levado à vitória e das dos seus oponentes.
Como poderíamos atingir no Brasil esse nível de envolvimento político, com o saudável fortalecimento da democracia que ele engendra? Como aprofundar a participação dos cidadãos para além do voto obrigatório no dia da eleição?
Uma resposta para esse dilema pode estar exatamente na questão do financiamento de campanha. Trata-se, mais precisamente, da adoção de um sistema baseado em contribuições individuais. É sabido que o custo das campanhas eleitorais no Brasil tem alcançado níveis antes inimagináveis -que o digam os mais de R$ 80 milhões gastos na campanha do presidente Lula em 2006. Esse custo tem sido em larga medida coberto por doações de empresas, o que por sua vez dá origem a muita discussão sobre como conter a influência excessiva desses financiadores e a promiscuidade que disso resulta. Infelizmente, essa discussão -quando não descambando em soluções apressadas e de cunho autoritário, como a proibição de certos tipos de evento de campanha- tem parado no beco sem saída do financiamento público. Afinal de contas, o contribuinte demonstra justificável receio de repassar seus impostos para um sistema sobre o qual ele não exerce qualquer controle direto.
Um sistema fundado em contribuições de pessoas físicas propõe uma saída entre a promiscuidade atual e o financiamento público, ao fazer uso da necessidade de recursos dos partidos para dar-lhes incentivos para mobilizar e responder às preocupações dos cidadãos. Consideremos, por exemplo, o sistema norte-americano, assim simplificado: apenas indivíduos podem doar dinheiro para campanhas, e as empresas limitam-se a organizar "comitês de ação política", com o objetivo de arrecadar doações individuais e repassá-las aos candidatos. A opção de financiamento público existe para estes, mas com o montante de recursos condicionado ao volume que conseguirem obter junto aos cidadãos. Os partidos têm, portanto, um forte incentivo a buscar e mobilizar os doadores individuais -vale dizer, os eleitores-, e os recursos vindos destes mantêm sob controle a influência promíscua das doações de empresas, cuja motivação tende a ser menos transparente do que a do eleitor comum.
É importante notar que não estamos falando de contribuições de milionários. Como há um limite às doações de um indivíduo para cada candidato (atualmente de US$ 2.300 por ciclo eleitoral), a influência de qualquer indivíduo fica também limitada.
O caso dos EUA mostra que muitas das doações são de apenas um punhado de dólares, e a campanha de Barack Obama prova que pode ser vantajoso montar uma base ampla de pequenos doadores, fornecendo recursos ao longo de meses sem atingir o teto individual. Tendo isso em mente, é mais fácil dirimir um eventual ceticismo em relação à implementação de um sistema de doações individuais no Brasil, baseado no fato de que o eleitor brasileiro típico, com menos dinheiro à disposição do que o norte-americano, teria menos recursos a despender em política.
É claro que o desenho do sistema teria de considerar a questão da transparência, exigindo a divulgação das doações e combatendo o caixa dois, mas é difícil imaginar que ele não seria muito mais transparente do que o atual. Com efeito, partidos obrigados a buscar recursos junto aos eleitores poderiam até mesmo ser forçados a reformular mais profundamente o sistema vigente, no qual tipicamente as pessoas cujas vozes são ouvidas no processo pré-eleitoral de um partido podem facilmente ser reunidas no apartamento de algum figurão da liderança, e o número de indivíduos envolvidos com o financiamento das campanhas não chega a cinco dígitos.


FILIPE CAMPANTE, 29, doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), é professor de políticas públicas na Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard.

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