São Paulo, Segunda-feira, 22 de Março de 1999
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Controle interno e externo da polícia


A repulsa da PM e da população à chacina em São Vicente indica que ambas desejam construir uma cooperação


PAULO SÉRGIO PINHEIRO e PAULO DE MESQUITA NETO
O que fazer para resolver o problema da violência policial no Brasil? O assassinato de três jovens em São Vicente reabre o debate sobre a violência arbitrária em São Paulo, especialmente na Polícia Militar. A informação de que os PMs acusados jamais haviam sido alvo de inquérito e foram bem avaliados nos exames para ingressar na carreira mostra a urgência da discussão.
Desde a transição para a democracia, a PM argumenta que é possível enfrentar a violência com seus mecanismos de controle interno (particularmente os sistemas de seleção, treinamento, supervisão e comando) ou por meio da Corregedoria e da Justiça Militar, quando abusos acontecem. Segundo a polícia, a resolução do problema dependeria da disponibilidade de recursos para aperfeiçoar tais mecanismos.
Pesquisadores e organizações da sociedade civil argumentam que a estrutura e a cultura da PM sustentam a prática da violência. Mecanismos internos de controle podem até conter a violência contra as elites brancas, mas não contra a maioria da população pobre e os negros (aliás, quando as polícias no Brasil vão se confrontar com o problema do "racismo institucional", apontado no último relatório sobre a polícia na Inglaterra?). Desse ponto de vista, a solução seria reformar ou unificar as polícias; pelo menos, desenvolver mecanismos de controle externo por parte do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil -além, é óbvio, de reduzir as desigualdades sociais.
Desde o retorno das eleições estaduais diretas, com o governo Montoro (que em 1983 pôs na agenda, pioneiramente, o controle do arbítrio policial), há um conflito latente. Os críticos da violência da PM apóiam o controle externo, contribuindo para a percepção dos oficiais de que ele visa enfraquecer a hierarquia e a disciplina militares. Em contrapartida, os defensores da PM apóiam (quando muito) o controle interno, em nome da necessidade de fortalecer a disciplina e a hierarquia.
Há um impasse. A PM não consegue fortalecer o controle interno, o que é demonstrado pelas mortes, chacinas e torturas: é só ler os relatórios da Ouvidoria. As organizações da sociedade civil (e, frequentemente, o governo) não conseguem implantar o controle externo. A violência persiste e parece escapar do controle da polícia, do governo e da sociedade civil, quase um quarto de século depois do final da ditadura.
Em 1997, entretanto, a adoção do policiamento comunitário começou a romper esse impasse. A PM reconheceu a importância do controle externo, e as entidades da sociedade civil reconheceram a do controle interno da polícia.
Não foi uma iniciativa isolada. O terreno para a aproximação foi preparado pela criação da Ouvidoria da Polícia, em 1995; pela implementação de propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos, desde 1996; e pela própria Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Ajudaram iniciativas como a disseminação do direito humanitário entre várias polícias, a cooperação com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e programas de intercâmbio.
Entre as inovações bem-sucedidas estão a mudança da competência para julgar PMs acusados de crimes dolosos contra a vida (que passou à Justiça comum), a tipificação do crime de tortura, a criminalização do porte ilegal de arma. Ressalte-se o valor da publicação regular de estatísticas sobre violência policial e dos cursos de direitos do cidadão na formação de policiais.
Mas muitos ainda encaram o policiamento comunitário com ceticismo e até hostilidade. Para alguns, as organizações da sociedade, quando o apóiam, abandonam inutilmente a causa da desmilitarização da polícia e enfraquecem a luta pelos direitos civis. Para outros, a PM inutilmente se empenha em relações públicas e serviços comunitários, abandonando a luta contra a criminalidade. Os insatisfeitos, porém, nem sempre apresentam alternativas.
Ao aderir à proposta do policiamento comunitário, a PM e as organizações da sociedade civil começam a mostrar que afinal compreenderam o que as democracias consolidadas já aprenderam há anos: o controle interno e o externo, isolados, são incapazes de conter a violência policial. Juntos, eles podem ser mais eficientes. Sua coexistência pode ajudar a transformar de vez a discussão sobre polícia numa simples questão de definição de política pública, para maior benefício do contribuinte.
A repulsa da PM e da população à chacina em São Vicente indica que ambas desejam construir uma cooperação -difícil, mas não impossível. Todos poderão beneficiar-se com o fortalecimento dos controles externo e interno, a diminuição da violência e a restauração da legitimidade do trabalho policial. Por tudo isso, é essencial que a apuração da responsabilidade por essa chacina e por outros assassinatos praticados por PMs seja conduzida de forma impecável. Para que não se desmoralizem, de uma vez por todas, as iniciativas de policiamento comunitário.


Paulo Sérgio Pinheiro, 55, é professor titular do Departamento de Ciência Política e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. É membro da Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias das Nações Unidas e relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos no Burundi (África).
Paulo de Mesquita Neto, 38, doutor em ciência política pela Universidade de Columbia (EUA), é pesquisador sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP.




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