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São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Indecência e imprevidência

O Brasil precisa reformar, radicalmente, o regime previdenciário. Para corrigir injustiças entre trabalhadores e aposentados e entre gerações atuais e futuras. Para usar melhor seus próprios recursos e depender menos do capital estrangeiro. E para aliviar ônus que compromete a capacidade do Estado de investir no ensino, no social e nas condições da produção. Entre os males do sistema vigente, nenhum é mais gritante na impropriedade ou mais oneroso nas consequências do que a relativa juventude com que se podem aposentar funcionários públicos.
Dito isso, a reforma da Previdência que o governo apresentará ao Congresso, com o apoio dos governadores, de tal forma contradiz os imperativos mais elementares do desenvolvimento e da justiça que merece ser repudiada pela nação e rejeitada pelo Congresso. Há nela três erros.
A primeira falha e a mais grave é o calote que se pretende perpetrar contra os servidores. O cidadão de classe média que planejou sua carreira, preferindo o setor público ao privado, aceitou ganhos restritos em troca de outras compensações. Entre essas, o regime da aposentadoria talvez seja a mais importante.
As propostas do governo abrangem não só a taxação dos aposentados mas também mudanças que prejudicariam gravemente os funcionários atuais, não apenas os futuros. Incluem o redutor de salários para efeito do cálculo da pensão e a alteração da idade para aposentadoria.
É a violação de contrato entre o Estado e um indivíduo que dedicou sua vida ao serviço público. Que se pretenda praticar esse calote por meio de emenda constitucional, dificultando o controle do abuso pelo Judiciário, apenas piora a agressão. O desejo de apressar o efeito fiscal da restrição ao gasto falou mais alto do que o reconhecimento da obrigação. Os autores desse descalabro julgam, com isso, demonstrar prudência. Demonstram ignorância do papel que o respeito pelo direito desempenha no desenvolvimento de um povo.
Qualquer renegociação da dívida pública interna, cujo serviço exige bem mais recursos do que o que o governo contribui para as aposentadorias públicas, foi apelidada de calote. Entretanto, para agradar aos credores do Estado, o governo propõe lesar os que entregaram ao Estado, mais do que dinheiro, suas vidas. E um partido baseado, historicamente, nos setores organizados da classe média, entre eles o dos funcionários públicos, resolveu traí-los em troca da confiança dos que, nos palacetes do Jardim Europa, festejam a degradação de seus antigos adversários.
O segundo equívoco é dar à reforma viés meramente fiscalista, subordinando a ele o outro grande objetivo da reforma previdenciária de que o Brasil precisa: mobilizar a poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo. A passagem para regime público de capitalização, com contas individualizadas de aposentadoria e mecanismos de redistribuição das contas mais ricas para as mais pobres, não é fácil. É, porém, necessária e viável.
O terceiro desvio é encaminhar reformas previdenciária e tributária desacompanhadas de iniciativas que democratizem oportunidades econômicas e educativas. Só essa democratização legitimaria os sacrifícios exigidos. Trata-se do mesmo erro cometido por Fox no México, com menor justificativa política e maior violência moral.
Lula e seus ministros são homens e mulheres decentes. Tramam agora indecência que o Brasil deve repelir.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.law.harvard.edu/unger


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