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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Indecência e imprevidência
O Brasil precisa reformar, radicalmente, o regime previdenciário. Para corrigir injustiças entre trabalhadores e aposentados e entre gerações atuais e futuras. Para usar melhor seus próprios recursos e depender menos do capital estrangeiro. E para aliviar ônus que compromete a
capacidade do Estado de investir no
ensino, no social e nas condições da
produção. Entre os males do sistema
vigente, nenhum é mais gritante na
impropriedade ou mais oneroso nas
consequências do que a relativa juventude com que se podem aposentar
funcionários públicos.
Dito isso, a reforma da Previdência
que o governo apresentará ao Congresso, com o apoio dos governadores, de tal forma contradiz os imperativos mais elementares do desenvolvimento e da justiça que merece ser repudiada pela nação e rejeitada pelo
Congresso. Há nela três erros.
A primeira falha e a mais grave é o
calote que se pretende perpetrar contra os servidores. O cidadão de classe
média que planejou sua carreira, preferindo o setor público ao privado,
aceitou ganhos restritos em troca de
outras compensações. Entre essas, o
regime da aposentadoria talvez seja a
mais importante.
As propostas do governo abrangem
não só a taxação dos aposentados mas
também mudanças que prejudicariam gravemente os funcionários
atuais, não apenas os futuros. Incluem
o redutor de salários para efeito do
cálculo da pensão e a alteração da idade para aposentadoria.
É a violação de contrato entre o Estado e um indivíduo que dedicou sua vida ao serviço público. Que se pretenda
praticar esse calote por meio de emenda constitucional, dificultando o controle do abuso pelo Judiciário, apenas
piora a agressão. O desejo de apressar
o efeito fiscal da restrição ao gasto falou mais alto do que o reconhecimento da obrigação. Os autores desse descalabro julgam, com isso, demonstrar
prudência. Demonstram ignorância
do papel que o respeito pelo direito
desempenha no desenvolvimento de
um povo.
Qualquer renegociação da dívida
pública interna, cujo serviço exige
bem mais recursos do que o que o governo contribui para as aposentadorias públicas, foi apelidada de calote.
Entretanto, para agradar aos credores
do Estado, o governo propõe lesar os
que entregaram ao Estado, mais do
que dinheiro, suas vidas. E um partido
baseado, historicamente, nos setores
organizados da classe média, entre
eles o dos funcionários públicos, resolveu traí-los em troca da confiança
dos que, nos palacetes do Jardim Europa, festejam a degradação de seus
antigos adversários.
O segundo equívoco é dar à reforma
viés meramente fiscalista, subordinando a ele o outro grande objetivo da
reforma previdenciária de que o Brasil
precisa: mobilizar a poupança de longo prazo para o investimento de longo
prazo. A passagem para regime público de capitalização, com contas individualizadas de aposentadoria e mecanismos de redistribuição das contas
mais ricas para as mais pobres, não é
fácil. É, porém, necessária e viável.
O terceiro desvio é encaminhar reformas previdenciária e tributária desacompanhadas de iniciativas que democratizem oportunidades econômicas e educativas. Só essa democratização legitimaria os sacrifícios exigidos.
Trata-se do mesmo erro cometido por
Fox no México, com menor justificativa política e maior violência moral.
Lula e seus ministros são homens e
mulheres decentes. Tramam agora indecência que o Brasil deve repelir.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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