São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Senhores da guerra

Robert McNamara foi o secretário da Defesa dos Estados Unidos nos governos Kennedy e Johnson (entre 1961 e 1968). Exercia o cargo hoje ocupado por Donald Rumsfeld no episódio mais dramático da Guerra Fria, quando os americanos constataram, em outubro de 1962, que os soviéticos haviam instalado mísseis nucleares em Cuba. Foi o momento em que o mundo esteve mais próximo de uma guerra atômica.
Depois de um duelo de nervos entre Kennedy e Kruschev, os russos cederam e removeram os mísseis. McNamara continuou no posto após o assassinato de Kennedy, em 1963. Foi durante o governo Johnson que o envolvimento americano na Guerra do Vietnã (que opunha o norte, comunista, ao sul, pró-americano) se acentuou, na tentativa vã de vencer uma guerra fadada a ser a única que os Estados Unidos perderam até hoje.
Num documentário agora em exibição ("Sob a Névoa da Guerra", direção de Errol Morris, 2003), McNamara, aos 85, fala com franqueza quase desconcertante sobre sua experiência à frente da maior máquina de guerra da História. Treinado em universidades de elite, recrutado por Kennedy na presidência da Ford, que ele havia recém-assumido depois de uma carreira fulminante, McNamara era um brilhante tecnocrata com posições intermediárias entre "pombas" e "falcões".
Como é freqüente em documentários, o filme transmite uma imagem simpática do protagonista. Afastado há tanto tempo do poder, é quase com gosto que McNamara afirma, por exemplo, ter sido "desproporcional" o ataque nuclear contra o Japão, que liqüidou a guerra em 1945, ou que a escalada promovida por Johnson e por ele próprio no Vietnã foi produto de erros de informação sobre as intenções e forças efetivas do inimigo.
Dois aspectos ressaltam do longo depoimento. O primeiro é o testemunho desse racionalista convicto de que a guerra tem um componente irracional que se sobrepõe aos demais: erros de avaliação, reações paranóicas, lances de acaso, crimes contra populações civis. O segundo é a confissão de que mesmo esse senhor esclarecido e ameno fez parte de um mecanismo impessoal que funciona de acordo com uma lógica própria, alheia a considerações de natureza humanitária.
No filme, McNamara dá um elenco de conselhos que poderiam ser resumidos, talvez, a tentar se colocar no ponto de vista do inimigo. O personagem é fruto de um período em que Estados Unidos e União Soviética se "educaram" reciprocamente nas artes da negociação implícita sob ultimatos paralisantes, quando o poder de cada lado limitava a arrogância do outro e o objetivo viável ainda era mais conter do que erradicar o adversário.
O contraste entre as personalidades de McNamara e de Rumsfeld reflete o contraste entre aquela situação e a atual. Não existe mais um contrapoder organizado e estável capaz de assegurar alguma racionalidade em meio à desrazão do conflito entre as potências. Esse contrapoder é hoje fragmentário, errático, sorrateiro e declaradamente irracional. Talvez seja mais difícil confrontá-lo e ainda mais difícil fazê-lo por meio de políticas moralmente defensáveis.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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