São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

40 anos depois

MARLY DE ALMEIDA GOMES VIANNA

Dia 1º de abril completaram-se 40 anos do golpe militar que por tanto tempo decidiu os destinos do país. Momento marcante de tantas de nossas vidas e de nossa história, dele meus jovens alunos mal ouviram falar -uma razão a mais, dentre tantas, para analisar, criticar e, principalmente, não esquecer aqueles acontecimentos.
Não esquecer o golpe de 1964 é também tirar dele lições, e, do ponto de vista dos que foram vencidos, daqueles que se colocam na perspectiva da esquerda, isso significa analisar a posição política dos partidos e organizações em que se atuava. Os erros cometidos -e erramos muito- ganham destaque justamente porque fomos derrotados, e importa saber por quê.
Erramos na avaliação da situação nacional, acreditando que o domínio e o controle das multinacionais e as imposições dos países-chefes do mundo estavam já superados; erramos, conseqüentemente, na avaliação política, acreditando que já havia no país um bloco de forças majoritário interessado em propor e garantir a execução das reformas estruturais; erramos ao pensar que desse bloco fazia parte "toda a nação", excetuados os "entreguistas", isto é, os interessados na subordinação do país ao capital estrangeiro. Nesses erros mencionados, a meu ver os principais, não há nenhum que autorize chamar a esquerda de golpista. Ao contrário, procurava-se, em primeiro lugar, formar a ampla frente para a execução das reformas de base. O erro foi imaginar que a frente estava formada.


É aviltante qualquer sugestão de que a esquerda e a direita tenham sido igualmente responsáveis pelo golpe militar


Exemplifica-se o pretenso golpismo, muitas vezes, com o dito por Luiz Carlos Prestes, na entrevista ao "Pinga-Fogo", no dia 3 de janeiro de 1964, quando o líder do partido comunista admitiu a hipóteses de uma Constituinte com Jango. Prestes aventou, na ocasião, a possibilidade de o PCB apoiar a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte antes das eleições presidenciais marcadas para 1965. A convocação de uma Constituinte, que implica amplíssima mobilização política nacional e eleições gerais, pode ser vista como um equívoco naquele momento, mas é impossível identificar golpismo nela.
Hoje, ao lembrar 64, muitas das críticas têm apontado uma posição golpista "dos dois lados". Golpistas foram os militares que deram o golpe e golpistas teriam sido também as forças democráticas que o sofreram. Além de não haver base objetiva para essa colocação, penso que o maior erro que ela contém é igualar -mesmo sem essa intenção- as posições da esquerda e da direita, não fazer diferença entre suas atuações, o que acaba por minimizar o golpe. Não foi a esquerda que interrompeu o processo democrático e nem sequer estava articulada para conter o golpismo fora da legalidade do famoso esquema militar de Jango. Há pouco, no Rio, um professor chegou a "predizer o passado": caso a esquerda vencesse, a repressão seria grande. Um velho revisionismo histórico que culpabiliza as vítimas pela repressão.
A violenta interrupção do processo democrático visou principalmente não aprofundá-lo. O golpe militar de 1964 desarticulou os movimentos sociais, acabou com os direitos individuais, calou o movimento sindical, impediu pela força a oposição, eliminou adversários, muitos deles da forma mais cruel e covarde, através da tortura. Aí estão os relatos sobre a repressão não só no Araguaia, mas de tantos militantes que morreram, como Mário Alves, sob suplícios bárbaros.
Elio Gaspari, no seu livro "A Ditadura Escancarada", faz a mais séria e contundente denúncia da tortura que conheço, contando também dos métodos, da conivência, da banalização e da justificativa da tortura por parte dos golpistas. É preciso nos darmos conta de que é aviltante qualquer sugestão de que a esquerda e a direita tenham sido igualmente responsáveis pelo golpe militar.
Alguns dos episódios do final de março, que envolveram soldados e marinheiros e que talvez tenham sido decisivos para o desencadeamento do movimento golpista, não tiveram orientação política da esquerda. A rebelião dos marinheiros foi um episódio de entusiástica e ingênua revolta, sem base, sem força que o amparasse, mas não foi golpismo. Foi um erro político, ninguém duvida, além de estar ligado ao sinistro personagem cabo Anselmo. Mas não se podem avaliar os acontecimentos políticos apenas com a frieza do se deu certo ou se deu errado. Houve muito mais do que provocação naquele episódio. Houve um importante momento em que aqueles que mínimas vezes tiveram voz se fizeram ouvir. É comovente lembrar os marinheiros amotinados que, ao chegarem as tropas do Exército para prendê-los, começaram a entoar, "boca chiusa", o "Cisne Branco", enquanto os soldados do Exército depunham suas armas e se solidarizavam com eles.
É preciso, é imprescindível não desqualificar as ações políticas simplesmente porque foram derrotadas. É preciso lembrar, passados 40 anos, todos aqueles que lutaram pela liberdade, por um Brasil melhor; aqueles que lutaram pela democracia e contra a corrupção, que deram suas vidas nessa luta, perdidas às vezes da forma mais cruel. É preciso não esquecer, "pela honra, pelos princípios".

Marly de Almeida Gomes Vianna, doutora em história pela USP, é professora aposentada da Universidade Federal de São Carlos e professora do mestrado em história da Universidade Severino Sombra, em Vassouras. É autora de "Revolucionários de 35, Sonho e Realidade" (Companhia das Letras).


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