São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve-se incentivar a clonagem terapêutica?

SIM

Salvando vidas

MAYANA ZATZ

Milhares de pessoas morrem todos os anos ou ficam seriamente incapacitadas por causa de doenças degenerativas. Substituir o tecido que está se degenerando ou um órgão não-funcional é um sonho antigo da medicina, que se realizou, de forma ainda limitada, no transplante de órgãos.
Pesquisas recentes têm mostrado que esse sonho pode estar mais próximo do que nunca. A esperança é que, a partir de células-tronco, ou seja, células ainda indiferenciadas, seja possível fabricar qualquer tecido e, com isso, salvar milhões de vida.
As questões agora são: Como obter células-tronco? O que tem isso a ver com a tão debatida clonagem terapêutica? Qual é a diferença entre clonagem reprodutiva e clonagem terapêutica?
É o que tentarei explicar a seguir.
Todos nós já fomos uma célula única, resultante da fusão de um óvulo e um espermatozóide. Essa primeira célula já tem, no seu núcleo, o DNA com toda a informação genética para gerar um novo ser. Logo após a fecundação, ela começa a se dividir. Após 72 horas, este embrião, agora com cerca de cem células, é chamado de blastocisto. As células internas do blastocisto vão originar as centenas de tecidos que compõem o corpo humano. São chamadas de células-tronco totipotentes (elas podem originar qualquer tecido).
A partir de um determinado momento, essas células começam a se diferenciar e formar os tecidos do organismo. Uma vez diferenciadas, todas as células descendentes manterão as mesmas características daquela que as originou, isto é, células de fígado vão originar células de fígado, células musculares vão originar células musculares etc.
Vamos imaginar uma pessoa que tem uma doença degenerativa dos músculos. É o caso, por exemplo das distrofias musculares progressivas, que afetam 80 mil brasileiros, crianças e adultos, e que, nas formas mais graves, podem levar à morte ainda na segunda década de vida. Como substituir o músculo doente por um saudável?
É esta justamente a grande esperança. A expectativa é que, a partir de células-tronco, seja possível "fabricar" um novo tecido muscular. A questão é como obter as células-tronco.
Existem três fontes, cada uma com suas vantagens, desvantagens e incertezas. São elas:
Crianças e adultos: têm células-tronco no sangue, na medula e em vários tecidos. As vantagens são a possibilidade de usar células do próprio doador e evitar problemas de rejeição. Mas não sabemos se elas existem em quantidade suficiente ou se têm a capacidade de se diferenciar em todos os tecidos ou só em alguns. O maior empecilho é que as células do próprio doador não serviriam para portadores de doenças genéticas.
Cordão umbilical: ele é rico em células-tronco e é uma fonte excelente para curar leucemias e doenças hematológicas. Mas não sabemos ainda se as células de cordão são totipotentes.
Células embrionárias: sabemos que elas são totipotentes. Os milhares de embriões que são descartados todos os anos em clínicas de fertilização poderiam ser uma fonte fantástica para a obtenção de qualquer tecido.
E a clonagem terapêutica, também é uma maneira de obter células-tronco?
Sim. A transferência do núcleo de uma célula de pele, por exemplo, para um óvulo sem núcleo pode transformar essa célula já diferenciada em uma célula totipotente. A partir daí seria possível fabricar qualquer tecido. Essa técnica tem a vantagem de evitar a rejeição se o doador for a própria pessoa -por exemplo, alguém que precise reconstituir a medula porque se tornou paraplégico após um acidente.
Entretanto ela não serviria para portadores de doenças genéticas, como um afetado por distrofia muscular progressiva que necessita substituir seu músculo esquelético. É importante lembrar que as doenças genéticas afetam 3% das crianças que nascem, ou seja, mais de 5 milhões de brasileiros.
Sabendo de todo esse potencial terapêutico, por que alguns são contra essa nova tecnologia?
Ela pode abrir caminho para a clonagem reprodutiva humana, geraria um comércio de óvulos; haveria destruição de "embriões humanos" e não é ético destruir uma vida para salvar outra, dizem alguns.
Apesar desses argumentos, a clonagem e o uso de células embrionárias para fins terapêuticos é apoiada pela maioria dos cientistas, por representantes de várias religiões e, principalmente, pelas pessoas que poderão se beneficiar dela. Com relação a abrir caminho para a clonagem reprodutiva, existe uma diferença fundamental entre os dois procedimentos: a implantação ou não em um útero humano. É impossível fazer um clone humano se o embrião não for inserido em um útero.
Quanto ao comércio de óvulos, não seria a mesma coisa que ocorre hoje com transplante de órgãos? Não é mais fácil doar um óvulo do que um rim?
Quanto a destruir "embriões humanos", estamos falando de cultivar tecidos ou órgãos, a partir de embriões descartados, que nunca serão inseridos num útero. Se esses embriões forem usados para salvar crianças e jovens condenados por doenças letais e incuráveis, não estaremos criando vida?
Precisamos entender a diferença entre clonagem reprodutiva (rejeitada pelos cientistas) e clonagem terapêutica. A Comunidade Européia e o Canadá aprovaram pesquisas com células de embriões de até 14 dias para fins terapêuticos. É fundamental que nossos legisladores também apóiem essas pesquisas, porque elas poderão salvar um número incontável de vidas.


Mayana Zatz, professora titular de genética humana e médica da USP, é coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da universidade.



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