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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve-se incentivar a clonagem terapêutica?
SIM
Salvando vidas
MAYANA ZATZ
Milhares de pessoas morrem todos os anos ou ficam seriamente
incapacitadas por causa de doenças degenerativas. Substituir o tecido que está
se degenerando ou um órgão não-funcional é um sonho antigo da medicina,
que se realizou, de forma ainda limitada, no transplante de órgãos.
Pesquisas recentes têm mostrado que
esse sonho pode estar mais próximo do
que nunca. A esperança é que, a partir
de células-tronco, ou seja, células ainda
indiferenciadas, seja possível fabricar
qualquer tecido e, com isso, salvar milhões de vida.
As questões agora são: Como obter
células-tronco? O que tem isso a ver
com a tão debatida clonagem terapêutica? Qual é a diferença entre clonagem
reprodutiva e clonagem terapêutica?
É o que tentarei explicar a seguir.
Todos nós já fomos uma célula única,
resultante da fusão de um óvulo e um
espermatozóide. Essa primeira célula já
tem, no seu núcleo, o DNA com toda a
informação genética para gerar um novo ser. Logo após a fecundação, ela começa a se dividir. Após 72 horas, este
embrião, agora com cerca de cem células, é chamado de blastocisto. As células
internas do blastocisto vão originar as
centenas de tecidos que compõem o
corpo humano. São chamadas de células-tronco totipotentes (elas podem originar qualquer tecido).
A partir de um determinado momento, essas células começam a se diferenciar e formar os tecidos do organismo.
Uma vez diferenciadas, todas as células
descendentes manterão as mesmas características daquela que as originou, isto é, células de fígado vão originar células de fígado, células musculares vão
originar células musculares etc.
Vamos imaginar uma pessoa que tem
uma doença degenerativa dos músculos. É o caso, por exemplo das distrofias
musculares progressivas, que afetam 80
mil brasileiros, crianças e adultos, e que,
nas formas mais graves, podem levar à
morte ainda na segunda década de vida.
Como substituir o músculo doente por
um saudável?
É esta justamente a grande esperança.
A expectativa é que, a partir de células-tronco, seja possível "fabricar" um novo
tecido muscular. A questão é como obter as células-tronco.
Existem três fontes, cada uma com
suas vantagens, desvantagens e incertezas. São elas:
Crianças e adultos: têm células-tronco
no sangue, na medula e em vários tecidos. As vantagens são a possibilidade de
usar células do próprio doador e evitar
problemas de rejeição. Mas não sabemos se elas existem em quantidade suficiente ou se têm a capacidade de se diferenciar em todos os tecidos ou só em alguns. O maior empecilho é que as células do próprio doador não serviriam para portadores de doenças genéticas.
Cordão umbilical: ele é rico em células-tronco e é uma fonte excelente para
curar leucemias e doenças hematológicas. Mas não sabemos ainda se as células de cordão são totipotentes.
Células embrionárias: sabemos que
elas são totipotentes. Os milhares de
embriões que são descartados todos os
anos em clínicas de fertilização poderiam ser uma fonte fantástica para a obtenção de qualquer tecido.
E a clonagem terapêutica, também é
uma maneira de obter células-tronco?
Sim. A transferência do núcleo de
uma célula de pele, por exemplo, para
um óvulo sem núcleo pode transformar
essa célula já diferenciada em uma célula totipotente. A partir daí seria possível
fabricar qualquer tecido. Essa técnica
tem a vantagem de evitar a rejeição se o
doador for a própria pessoa -por
exemplo, alguém que precise reconstituir a medula porque se tornou paraplégico após um acidente.
Entretanto ela não serviria para portadores de doenças genéticas, como um
afetado por distrofia muscular progressiva que necessita substituir seu músculo esquelético. É importante lembrar
que as doenças genéticas afetam 3% das
crianças que nascem, ou seja, mais de 5
milhões de brasileiros.
Sabendo de todo esse potencial terapêutico, por que alguns são contra essa
nova tecnologia?
Ela pode abrir caminho para a clonagem reprodutiva humana, geraria um
comércio de óvulos; haveria destruição
de "embriões humanos" e não é ético
destruir uma vida para salvar outra, dizem alguns.
Apesar desses argumentos, a clonagem e o uso de células embrionárias para fins terapêuticos é apoiada pela
maioria dos cientistas, por representantes de várias religiões e, principalmente,
pelas pessoas que poderão se beneficiar
dela. Com relação a abrir caminho para
a clonagem reprodutiva, existe uma diferença fundamental entre os dois procedimentos: a implantação ou não em
um útero humano. É impossível fazer
um clone humano se o embrião não for
inserido em um útero.
Quanto ao comércio de óvulos, não
seria a mesma coisa que ocorre hoje
com transplante de órgãos? Não é mais
fácil doar um óvulo do que um rim?
Quanto a destruir "embriões humanos", estamos falando de cultivar tecidos ou órgãos, a partir de embriões descartados, que nunca serão inseridos
num útero. Se esses embriões forem
usados para salvar crianças e jovens
condenados por doenças letais e incuráveis, não estaremos criando vida?
Precisamos entender a diferença entre
clonagem reprodutiva (rejeitada pelos
cientistas) e clonagem terapêutica. A
Comunidade Européia e o Canadá
aprovaram pesquisas com células de
embriões de até 14 dias para fins terapêuticos. É fundamental que nossos legisladores também apóiem essas pesquisas, porque elas poderão salvar um
número incontável de vidas.
Mayana Zatz, professora titular de genética humana e médica da USP, é coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto
de Biociências da universidade.
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